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Ana Pais Oliveira

Para onde se dirige o artista quando quer ser ouvido?

 

 

Quem quiser introduzir algo de novo no seu espaço de especialização tem que sair dele.

Não há alternativa. A viagem é, neste sentido, fundamental. Quem viaja muda de ideias.

(M. Tavares, 2011: 43)

 

 

O melhor momento para descobrirmos e fazermos coisas novas dá-se, talvez, quando não estamos a pensar no que queremos descobrir e fazer, quando estamos a pensar numa outra coisa, distraídos do nosso centro e dos nossos propósitos e a assimilar contribuições de outros espaços e contextos. A reflexão inerente à prática artística pode ser absorvente, manipuladora do próprio artista e envolvida em constantes pausas e impasses. Pode acontecer em processos circulares fechados que não chegam a lado algum para além do seu ponto de partida. Neste sentido, a viagem de que fala Gonçalo M. Tavares é, efetivamente, fundamental: dando passos de dentro para fora, e depois observando de fora para dentro, o distanciamento criado pode ser um princípio para novos caminhos. É neste contexto que talvez possamos enquadrar a investigação em arte e o seu impacto na própria produção artística, aquela que tem como objetivo fundamental regressar a si mesma, no final da viagem, munida de novas ferramentas. Quando o artista se situa num novo contexto e tem que encontrar a sua posição nesse ambiente mais ou menos conectado com a sua própria produção, poderá existir uma maior probabilidade de mudar de ideias, colocando a sua prática artística num outro lugar. Dificilmente avaliaremos este lugar como melhor ou pior, mas pretende-se, aqui, questionar o quão diferente ele é e que tipo de artista se constrói ou se transforma e modela num contexto académico. Entre os parâmetros e regras da academia e as especificidades do mundo da arte, terá o artista que privilegiar uns em detrimento dos outros? E onde se enquadram as noções de subjetividade e experimentação?

 

Uma parte significativa da rotina de trabalho de um artista passa pela pesquisa. Podemos chamar-lhe investigação, mas a palavra ocupa muito espaço e este é necessário para a prática e a experimentação, para um fazer que, de modo consciente, ou não, se serve desse processo correlacional de procura, reflexão e pensamento. Investigar, como ato de procurar, estudar, analisar e explorar, e essencialmente como ato de aprofundar, é um termo e uma realidade implícita e necessária na prática artística. O que interessa, então, perceber, é o que distingue o artista que insere voluntariamente a sua prática artística no contexto académico e que, por isso, exponencia a relevância de comunicar esse processo de reciprocidade entre pensamento e ação, considerando-se, eventualmente, um artista-investigador, daquele que não o faz, não querendo ou não precisando. O facto de se tratar de uma decisão voluntária, por parte do artista, poderá ser diferenciador dos resultados desse enquadramento da prática artística no âmbito académico. Falamos, efetivamente, de uma necessidade intrínseca às especificidades do seu trabalho e alheia a fatores ou exigências externas: o artista decide ingressar ou reingressar (na maioria dos casos) na academia como resultado das necessidades e vontades específicas do seu trabalho, habitualmente com o intuito de o situar, enquadrar e propor-cionar reflexões próprias e alheias sobre o mesmo. Coloca-se, enfim, a questão sobre o que acontece a esse artista e se, na realidade, o seu trabalho é trans-portado para um novo lugar. Coloca-se, ainda, a questão de partida: o que faz um artista que, muitas vezes, se sente envolvido e limitado num circuito fechado, reincidente e repetitivo, que não ouve e não se faz ouvir sobre o seu trabalho, ou que não encontra as condições para o fazer, quando quer comunicar a sua prática para além do que ela afirma nos habituais contextos de exposição? Para onde se dirige o artista quando quer comunicar mais eficazmente a reflexão inerente à sua prática, ou quando quer ser entendido? As referências para procurar possíveis respostas a estas questões partem de uma experiência individual.  A decisão de fazer um doutoramento em pintura partiu, efetivamente, de uma necessidade do próprio trabalho, a de se colocar num contexto de discussão sobre a prática e o fazer, sobre opções e noções, e de criação de condições para um enquadramento mais consciente do mesmo, projetando necessidades futuras. No fundo, trata-se de uma espécie de parar para pensar, embora nunca se pare de fazer. Não deixa, no entanto, se ser uma pausa na prática artística continuada e no processo criativo centrado na experimentação: para escrever sobre o trabalho, é necessário um confronto mais doloroso com o mesmo e uma quase maior autoconsciência, diminuindo a velocidade de produção e olhando para a mesma várias vezes, sob vários ângulos e perspetivas. Assim, o que acontece é que a viagem se traduz numa produção intensiva de coisas, palavras, textos, explanações, aprofundamentos, objetos, esboços e experimentações. E, como afirma Gonçalo M. Tavares, a teoria tem a ver com a ligação entre todas as coisas:

 

A diferença entre a prática e a teoria: a prática tem a ver com o concreto, o material, o específico. A teoria tem a ver, até etimologicamente, com o ‘não-limite’, com aquele espaço de reflexão onde tudo está livre mas, ao mesmo tempo, ligado. O mesmo se passa com o termo ‘universidade’. Muitas vezes afunilam-se tanto os saberes em determinados redutos e esquece-se, na Universidade, que tudo tem a ver com tudo. (M. Tavares, 2011: 43)

 

Assim, nesse contexto académico, onde tudo tem a ver com tudo, as especifi-cidades do trabalho prático de cada um podem ser o elemento aglutinador de todas as coisas que lhe interessam e o fazem transformar-se, diferenciando desse modo a pesquisa particular do artista. A partir de uma liberdade total para a reflexão, cria-se um filtro que destaca as componentes essenciais da interseção entre o pensar e o fazer, criando ainda um espaço de especialização novo, próprio e capaz de contribuir de algum modo para o todo. Idealmente, será isto o que acontece. Mas, durante a viagem, é possível que o trabalho artístico se modifique devido a um envolvimento mais evidente e necessário  com a teoria?

 

James Elkins, responsável pela edição do livro Artists with PhDs – On the new Doctoral Degree in Studio Art, de 2009, defende que alguns tipos de prática artística poderão vir a ser influenciados pelos novos programas doutorais e que a arte em geral pode tornar-se mais académica e intelectual, ou seja, mais envolvida com a teoria. Mas acrescenta que este tipo de polémica, que foi comum, nomeadamente, entre o público das primeiras conferências sobre doutoramentos em prática artística, realizadas em Los Angeles (2003), não são o que interessa focar. Interessa, sim, entender o lugar destes novos cursos no panorama académico, conceptualizando os doutoramentos em arte como desprovidos da necessidade de depender das noções de pesquisa e de produção de conhecimento novo. Elkins defende que, para a maioria dos artistas, conhecimento não é o que a arte produz. Poderá produzir emoção, expressão, paixão, prazer estético, significado. Mas não conhecimento, pelo menos numa conceção usual e disseminada.

Podemos, no entanto, pensar que aquilo que o artista produz, mediante uma experiência artística acumulada e um necessário processo de reflexão devida-mente articulado com a prática, constitui, à partida, um contributo. Aliás, quando o artista escreve sobre o seu próprio trabalho, sobre questões que o envolvem ou sobre conceitos, temas e especificidades coincidentes com a sua prática, apresenta um contributo dificilmente atingível por outros, por quem está de fora, no sentido em que há uma experiência prática que fica traduzida, acessível e valorizada.

 

Jacques Herzog, da dupla de arquitetos Herzog & de Meuron, afirmou na conferência Herzog & de Meuron: Myths and Collaborations over Time, proferida na The 2013 Preston H. Thomas Memorial Lecture, Cornell University, que os textos sobre arquitetura são todos aborrecidos e não sobrevivem. Para Herzog, esses textos usam um meio, a linguagem, que deveria ser profissional, ou seja, idealmente deveriam ser os escritores a escrever livros. Para Jacques Herzog, os arquitetos podem escrever melhor ou pior, mas, não sendo escritores, não são os que escreverão melhores livros. É neste sentido que o arquiteto afirma que a poesia é a melhor forma de texto escrito, ou de linguagem escrita: sobrevive sempre. É apenas poesia, é apenas o que o texto diz. Já os textos teóricos de arquitetura, nas palavras do arquiteto, tentam dizer coisas em que devemos acreditar, resultando numa energia perdida, numa espécie de publicidade que não está centrada na linguagem. 

 

Este é um exemplo de uma forma de pensar sobre o texto e a sua relação com a arte ou a arquitetura, ou qualquer outra área sobre a qual o texto se debruça.

No caso dos textos sobre arte, podemos pensar na diferença entre os que são escritos por pessoas cuja profissão abrange vincadamente a escrita, como os historiadores, críticos, jornalistas ou professores, e aqueles que são escritos por quem faz a arte. Estes, algumas vezes, não sentem necessidade de mergulhar na escrita, não o querem ou não sabem exatamente como o fazer. Por outro lado, há os que precisam de o fazer, querem e praticam, tal como se pratica a arte. Então, neste ponto, interessa questionar se a diferença da escrita do artista em relação à escrita dos que estão no lado de fora do fazer, pode enfim constituir a grande mais-valia da investigação em arte e do trabalho do artista-investigador: dar a ver o que serve de base à prática artística e ao processo criativo, evidenciar processos e o valor da experiência, comunicar as estra-tégias, opções e fundamentação teórica que originam os resultados. Voltando à provocação de Jacques Herzog, podendo não ser o artista aquele que escreve melhor, não será ele o que entende melhor o que foi feito e o que é necessário fazer? Não será ele que melhor pode escrever sobre os materiais, as texturas, as relações cromáticas, os problemas com a luz, os problemas com o tempo, as secagens, os impasses, as esperas, os acasos, as tentativas e o erro como motor essencial do fazer? Podendo estar desprovido de outras ferramentas essenciais à escrita de textos sobre arte, a verdade é que o artista está munido de uma espécie de informação privilegiada, a que provém do seu próprio processo criativo.

 

Numa fase final do projeto de doutoramento, um projeto centrado na prática artística e que aborda questões fornecidas pelo próprio trabalho de atelier, posso afirmar com alguma convicção de que o trabalho artístico foi trans-portado para um outro lugar. Novas possibilidades, em atelier, tornaram-se indispensáveis e urgentes mediante um processo de pesquisa em torno de questões coincidentes com as preocupações essenciais da prática artística desenvolvida.  Parece ser nesta fusão entre criação e investigação que reside a capacidade de informar, potenciar, prolongar e relançar o objeto artístico. Não existe uma mudança de uma espécie de linguagem da criatividade para a linguagem da pesquisa. Poderão existir momentos distintos que se cruzam e intersetam, que se complementam ou que se alternam, inseridos num ciclo geral de pensamento e ação, formação e transformação.  

 

Depois de um contacto aprofundado com temas e questões importantes do meu trabalho, como a relação entre arte e arquitetura e o papel da cor nesse processo de contaminação e colaboração, a pintura ganhou uma nova necessidade de sair de si própria, de se distender para o espaço real e de se tornar objeto, coisa volumétrica e progressivamente mais transformadora do espaço. Não é evidente que isto aconteceria se não tivesse ingressado num contexto de pesquisa como este nem posso afirmar com convicção de que houve um uso instrumental da teoria: no sentido de, se não lesse e pensasse isto, não faria aquilo. Mas é evidente que a aproximação a novos conceitos, o conhecimento aprofundado do trabalho de artistas que operam questões coincidentes, em algum ponto, com a minha prática, as leituras, reflexões e dúvidas proporcionaram novos campos de experimentação artística. Passou a fazer mais sentido ou a ser mais necessário concretizar determinadas opções. O trabalho mudou.

 

Na minha prática artística, todos os trabalhos arrumam em si mesmos as especificidades da pintura, ou são contaminados por um ser pintura, independentemente dos caminhos que tomam para dar forma a uma ideia. Entre os volumes de pintura que se afastam timidamente da parede, as peças tridimensionais que também não arriscam sair da parede e alguns volumes tridimensionais  que ganham coragem e saltam para o espaço expositivo, estamos sempre, primordialmente, mediante pintura. Claro que a pintura chama, para si, coisas que gosta de ver na escultura ou na arquitetura, como se por momentos as invejasse, embora logo de seguida se lembre que estar fora de si é um estado de enorme ansiedade e desconstrução identitária, que mais vale regressar a si mesma e comportar-se com honestidade. Aí, a pintura fica consciente de si, voltada para os seus próprios meios, processos e questões. Pode parecer não estar bem onde está, pode viajar e procurar pontos de fuga inesperados, mas regressa sempre a si mesma.

Mediante a pesquisa de doutoramento, a derivação tridimensional da pintura passou a concretizar-se, assim,  na escolha dos suportes, na sua expansão, na articulação de uma linguagem arquitetónica apropriada para o espaço pictórico com uma sugestão de bairros habitacionais quase experimentáveis e com a ideia de casa, esta enquanto o lugar por excelência e o nosso canto do mundo (Bachelard, 1994).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 1 – Ana Pais Oliveira. Casa de partida #16. Técnica mista s/ cartolina, 15x30cm, 2015.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 2 – Ana Pais Oliveira. Onde vamos morar? #2. Acrílico s/ madeira, 120x6x6cm, 2014.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 3 – Ana Pais Oliveira. Small tower groing nowhere. Acrílico s/ madeira, 60x150x10cm, 2015.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 4 – Ana Pais Oliveira. Solução de habitação. Acrílico s/ tela, 60x150x10cm, 2015.

 

 

 

Há, ainda, os desenhos, que como forma de pensar o espaço, a paisagem e a arquitetura, e de transmitir essa reflexão para o ato de riscar, são também pintura. Talvez possamos pensar que a cor assume um papel fulcral nessa ação de impregnar qualquer trabalho com um caráter pictórico, pelo seu potencial transformador no modo de desenhar e estruturar o espaço. A cor é sempre o elemento visual e expressivo primordial que compõe o meu trabalho, orienta a sua gestão e construção, transforma significativamente o espaço, a paisagem e a gramática da arquitetura. É assumida como experiência e unidade autónoma e, à sobreposição de camadas de cor e tinta sucede-se um olhar que decanta e tateia, um olhar que experimenta e procura saber. A cor oferece campos ambíguos de perceção, engana enquanto diz.

 

Entretanto, a escrita acompanha, acrescenta, prolonga e incute a reflexão própria e alheia. A pintura vem primeiro e pode existir sem a palavra, embora não sem o pensamento. Se escrevermos sobre o que vemos, a palavra será clara, reta, deixando um registo imutável e constante,  mesmo que o ponto de partida original se mantenha em estado de trânsito, em consecutiva mudança e cedência às ações externas que nela se projetam. Mas se não escrevermos sobre o que vemos, talvez se ofereça a possibilidade de alargar os sentidos e de a obra ser, ela mesma, enriquecida, alargada e impregnada por estes. Aqui, a obra torna-se volumétrica e densa pela adição, sobreposição e contaminação de sentidos. Entre o escrever e o não escrever, nunca se questiona o pensar ou o não pensar. A pintura pensa-se a si mesma enquanto se faz. É através do fazer, da vivência do atelier, da ocupação física, efetiva e afetiva desse espaço e do confronto insistente com a pintura que produzo o objeto. Depois disso, a escrita pode ter a capacidade ativa de potenciar e relançar a pintura. 

 

Escrever sobre a minha pintura é uma exigência que a própria pintura reivindica para si, querendo ver-se como que entendida e arrumada por momentos. Escrevo, quase sempre, depois de a pintura estar terminada. Mas esta é, muitas vezes, autorreferencial e afogada no seu próprio ser, sendo pouco mais do que ela própria, não precisando dessas palavras para sobreviver. Deste modo, as palavras podem vir contaminá-la ou acrescentar coisas que a pintura não tinha pedido para si. Ainda assim, escrevo como tentativa de a prolongar e de dar a ver os meus sentidos para a obra.

 

Partindo desta experiência individual, e considerando ser possível responder à questão que intitula este texto, é possível afirmar que um dos sítios para onde o artista se dirige quando quer ser ouvido é a escola de arte, a academia, envolvendo-se num contexto de maior e mais frequente discussão sobre o trabalho e de estímulo à procura e à inquietação. A partir desta opção, o artista-investigador não é necessariamente diferente dos outros artistas, principal-mente se tivermos em conta que, como já afirmado, grande parte da rotina dos artistas centra-se na pesquisa e não se pode dissociar a prática do pensamento, ou de uma chamada teoria. Mas o artista-investigador terá de encontrar novas estratégias e metodologias para o seu trabalho, estas enquanto formas de sistematizar e produzir ideias através do objeto artístico. O método de trabalho em investigações em pintura, e não sobre pintura,  traduz-se nas estratégias utilizadas para encontrar uma reciprocidade eficiente entre a componente prática e a componente teórica, sendo que o importante é tornarem-se evidentes as questões processuais. A transformação subsequente à necessária formação e enquadramento do trabalho artístico individual num contexto académico e de reflexão e discussão, bem como no meio artístico envolvente, permitem a integração de novas aquisições e reequilibrações sucessivas no âmbito de uma necessária plataforma de teoria e prática. Neste contexto, o artista-investigador pode distinguir-se dos outros artistas:

 

The artist-as-researcher distinguishes himself from other artists by taking it upon himself to make statements about the production on his work and about his thought processes. The artist-researcher allows others to be participants in this process, enters into a discussion with them and opens himself up to critique. This is by no means self-explanatory; it actually represents a radical shift in the conception of ‘artistry’. After all, the romantic view of the artist as a recluse in a studio from which he or she sends messages out into the world was prevalent until far into the 20th century. [1] (Wesseling,  2011: 3)

 

Talvez a grande diferença entre o artista-investigador e os outros artistas não resida tanto nessa questão das afirmações que ele faz sobre o seu trabalho, algo que é cada vez mais comum e necessário, mas sim nessa disponibilidade para uma maior sujeição à crítica: o artista coloca-se num contexto de maior exigência teórica e conceptual, onde necessariamente tem que lidar com considerações sobre o seu trabalho, expondo-se de modo mais evidente, defendendo-se e submetendo-se a avaliações mais diretas. Tal como afirma Janneke Wesseling, o artista-investigador procura a discussão no domínio público.

 

É este carácter eminentemente público que pode tornar-se uma necessidade para o artista. O artista que encontra, no seu trabalho, uma necessidade de reinserção num contexto académico, é também resultado desse artista que abandona o espaço privado e encerrado do atelier e sai para a rua, interage com o quotidiano, o espaço e a cidade, vê o que se faz e mostra-se como agente no meio da arte. Envolve-se noutras áreas, entra noutros campos, assume o contexto como matéria de trabalho e a intertextualidade e a transdisci-plinaridade como parte enriquecedora do seu processo criativo, não se dissociando da história, da crítica ou da política, algo que se tornou mais evidente e frequente a partir dos anos 1960:

 

The idea of art-as-research flows from art itself, in particular from the conceptual art of the 1960s onwards. Conceptual artists oppose the view that art can be viewed in isolation from history and politics, and they assert that art is necessarily cognitive.[2] (Wesseling, 2011: 3)

 

Um artista que está, por isso, envolvido com o meio, facilmente se depara com a necessidade de ingressar num contexto específico de troca de ideias onde não se pode desviar da necessidade de afirmar, contribuir, mostrar, comparar, avaliar e expor-se, a si mesmo e à obra. O artista deixa, efetivamente, de estar fechado, seja no atelier, seja sobre o seu próprio trabalho ou sobre si mesmo, sendo uma real necessidade o abandono de qualquer pudor em relação ao ato de falar e escrever sobre o seu trabalho: falar sobre pintura não retira o seu potencial expressivo e estamos mediante um nível de interpretação que pode e deve recorrer à palavra para adensar a perceção. Para além disso, a documen-tação da prática artística pode ser, em si mesma, um processo de investigação.

 

A criação artística e a investigação em arte podem, assim, unir esforços com dois objetivos fundamentais: o de colocar a prática artística num outro lugar, talvez novo, talvez apenas diferente, desejavelmente melhor ou com uma melhor noção de si mesma e do que a enquadra e, por isso, também a define; e o de dar um contributo à comunidade académica, aos teóricos, professores, críticos e artistas: tratando-se de um artista a pensar, a fazer e a escrever, e a refazer, essa experiência e método de trabalho muito particulares e conectados com as especificidades do fazer podem constituir um resultado contentor de novas competências e sentidos, tornando pública e acessível uma experiência pessoal como matéria para a reflexão e o conhecimento.

 

 

Referências bibliográficas

 

BACHELARD, Gaston (1994). The Poetics of Space. Boston, Beacon Press.

ELKINS, James. Ed. (2009). Artists with Phds - on the New Doctoral Degree in Studio Art

Washington, DC, New Academia Publishing.

GUERRERO, Julián; TAVARES, Gonçalo M.; ROCHA, Paulo Mendes. (2011). Pensar a

Casa. Conferências da Casa 1. Matosinhos, Associação Casa da Arquitectura.

Herzog & de Meuron (2013),  Myths and collaborations over time. The 2013 Preston H. Thomas Memorial Lecture held by Jacques Herzog at the Cornell University, Department of Architecture, Abby and Howard Milstein Auditorium, Milstein Hall, Ithaca, New York, 10 September 2013.

In http://livestream.com/accounts/1634994/events/2388429 [acedido em 29-04-2015]

WESSELING, Janneke. Ed. (2011). See it again, say it again - The artist as Researcher.

Valiz, Amsterdam, Antennae.

 

(19.6.2015)

 

 

 

 

[1] O artista-investigador distingue-se dos outros artistas tomando para si a realização de afirmações sobre a produção do seu trabalho e sobre os seus processos de pensamento. O artista-investigador permite a outros serem participantes deste processo, entra numa discussão com eles e abre-se à crítica. Isto não é, de modo algum, autoexplicativo; representa realmente uma mudança radical na conceção da ‘mestria’. Afinal, a visão romântica do artista como um recluso num estúdio a partir do qual manda mensagens para o mundo prevaleceu até tarde no século XX. – tradução livre da autora.

 

[2] A ideia da arte como pesquisa flui da arte em si, particularmente a partir da arte conceptual dos anos 1960. Os artistas conceptuais opõem-se à ideia de que a arte pode ser vista isoladamente da história ou da política e afirmam que a arte é necessariamente cognitiva. – tradução livre da autora. 

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