top of page

António Quadros Ferreira

 

A investigação dá a conhecer o acto de criar?

 

A arte é um processo intelectual:

é um conhecimento em estado de recepção

Almada Negreiros[1]

 

 

 

0. introdução

 

Ao longo dos tempos foi possível a construção e observação diferenciada de percepções sobre a fenomenologia da arte. Os últimos 500 anos de história da arte são suficientemente expressivos acerca da mutabilidade do estatuto e da função do objecto artístico. Por isso, e de um modo implícito, ou não, da natureza do objecto decorrem estruturas funcionais de narrativas e de representações.

Os processos, que são do âmbito da criação e da recepção, do âmbito tam-bém das opções estéticas e de composição, como ainda do âmbito do sentido do (in)útil e do (dis)funcional, mais não fazem do que classificar e sistematizar, em modo de se dar a ver (e de se dar a fazer?) o sentido do conhecimento que, em arte e em pintura, é do domínio da invenção.

Em consequência, o âmbito que nos ocupa é o dos modos de pensar e fazer pintura, pelo que direccionamos o nosso ensaio, não apenas ao que é próprio do sentimento abstracto e puro da criação, mas também à pintura enquanto forma e expressão de uma atitude (e de uma) estética, que também o é. Pretendemos, de facto, participar em um outro observar, isto é, pretendemos contribuir para uma compreensão da visão da arte e da pintura sob o ponto de vista da criação e do pintor.

Estamos em crer que a eficácia de um entendimento contemporâneo é, de facto, um dos anseios fundamentais para se estabelecer similitudes entre o acto de pensar e o acto de fazer: similitudes entendidas como momentos que advêm da necessidade de reflectir e de criar.

De reflectir sobre a criação, e de criar sobre a reflexão?

Na nossa opinião o contexto académico e universitário surge, parece-nos, como contexto manifestamente favorável a um exercício de construção sistemática de conhecimento, de invenção, e de criação: uma vez que o ensino e a investigação da arte na universidade impõe-nos um novo olhar e um novo questionamento das diferentes derivas e implicações da acção e do facto artísticos.

 

 

1. investigação e criação​

 

A investigação em pintura tem o objectivo, não só de tornar mais nítida a consistência teórica da prática artística, como a de tornar a obra mais polissémica. Se da criação depende o objecto – enquanto expressão de uma prática, e se da investigação depende uma especulação sobre os contextos desse mesmo objecto – enquanto expressão de uma teoria, que relação e contaminação entre investigação e criação?

 

Entre a teoria e a prática, o objecto artístico e pictórico parece ser o de um lugar-território, onde se concita o pensar e o fazer, o revelar e o mostrar, e o reflectir e o produzir, como sendo algumas das circuntâncias do universo artístico. Lugar-território que, ocupando um antes e um depois, é o da per-tença de um presente, de um durante. Por isso, lugar-território ou espaço-tempo que suscita consignar a fenomenologia do objecto artístico numa relação tríade, onde a latência é determinante para se compreender a extensão de um fio que une a origem (antes) ao resultado (depois). Isto é, a latência que se situa entre o que não se sabe ao que se julga saber. Que se situa entre momentos como os de reunir ou desejar com os de compor ou de condicionar. Mas também nos momentos de acumular ou de optar.[2]

Tanto a pintura como a investigação, que lhe é inerente, pensa-se como estado de conhecimento, que o mesmo é dizer, como estado tanto de produção como de recepção. Ou, as sugeridas simultaneidades entre o estado de conhecimento do que é a investigação na pintura, e do que é a pintura na investigação, convocam-se como instâncias funcionalmente múltiplas do que pode ser o entendimento da investigação em pintura, nomeadamente, a) a investigação como reflexão, b) a investigação como processo intelectual, e c) a investigação como acto comunicativo.

 

Como reflexão questiona-se a investigação enquanto totalidade de um acto de reflectir: tanto para pensar como para produzir. Isto é, tanto para dizer, como para fazer. Embora, muitas vezes, associa-se o primado da investigação simplesmente apenas para explicitar ou fundamentar a arte e o seu objecto: no fundo, explicitar o seu dizer. Por isso, é possível dizer a pintura? É possível investigar o dizer da pintura? Como dizer o que parece não se poder dizer? Como contar o que parece não se poder contar? O que é a pintura? O que é a pintura antes, durante, e depois, do seu objecto? Como começa a pintura? Que revela a pintura?

 

Como processo intelectual questiona-se simultaneamente enquanto reali-dade de investigação e de criação, ou a pintura parece encerrar-se como processo intelectual e como processo de conhecimento: em estado de recepção a pintura investiga-se enquanto território, amplo, de compromisso e de meio, território que se cumpre no intervalo entre o pensar e o fazer. Neste contexto, a dimensão expandida que comporta a investigação em pintura parece ser, em boa verdade, a da investigação intermédia[3].

 

Como acto comunicativo a realidade de uma instância imprescindível. Pois permite-se fazer comunicar a comunicação. Nomeadamente, a propósito da construção de metodologias e a sua consequência investigativa, seja no âmbito da reflexão, seja no âmbito da produção, em ambiente teórico-prático. Pelo que:

  • a possibilidade de se fazer falar a pintura em ambiente de investigação sobre a pintura, investigação teórica e sobre a reflexão, o que se explica em caminho de uma unicitária metodologia regulada ou tipificada, e

  • a impossibilidade de se fazer falar a pintura em ambiente de investiga-ção em pintura, investigação teórico-prática e sobre a produção, o que se implica em caminho de muitas possíveis metodologias.

 

A investigação em pintura, na sua acepção mais abrangente, pode possuir desvios bastantes no que se refere à sua relação com a produção artística. Desvios esses, de aproximação ou de afastamento relativamente ao objecto, e que fazem com que a cada instância, caminho, ou processo, corresponda uma metodologia distinta, isto é, o que importa é, com efeito, saber-se nomeadamente se um determinado foco ou pergunta de investigação compromete ou não a criação, nela agindo numa dimensão absolutamente artística ou numa dimensão apenas comunicacional[4].

Consequentemente, a possibilidade de se pensar a investigação como implícita à pintura e à fenomenologia da criação obriga a questioná-la, obrigatoriamente, num contexto dual entre a teoria e a prática, isto é, a pintura em estado de investigação parece ser a que se pensa e a que se faz como expressão convergente: ou a investigação como expressão de uma teoria, e a criação como expressão de uma prática.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

António Quadros Ferreira, Estudo 1, lápis e caneta de feltro sobre papel Almaço quadriculado, 32x43cm, n/d.

 

 

2. processo e pensamento

 

A viagem antes da viagem (ou processo antes do processo) é já o lugar de uma espécie de lugar zero ruptura nómada, ou a ideia de viagem como pura enunciação, por exemplo, que nos permite pensar a imagem como lugar-mãe de todo o pensamento. Mãe e condição de um pensamento que acciona o processo como lugar da intenção e da extensão. Isto é, como viagem-lugar de um caminho único e singular?

 

No posicionamento da nossa própria perspectiva, sentimos o que dizemos desta maneira: a pintura não se autonomiza, embora se suporte, aparente-mente, em dois momentos distintos. O momento do processo, e o momento do produto. Tematizando-se, desse modo, a sua possibilidade enquanto prática, de maneira a que o processo artístico culmine no produto do objecto da pintura, concomitantemente no discurso do processo que lhe é simultaneamente anterior e posterior.

 

Pensar arte, ou fazer arte, é regressar a casa, ou a um lugar primordial, é atravessar o sentido das coisas, a viscosidade dos vestígios, a situação na proximidade do aberto, da liberdade e da utopia. Pensar o vestígio, ou fazer a utopia, permitem a organização de um tempo de memória, de densidade e de projecto. Como em Jackson Pollock, ou em Nan Goldin, onde parece ocorrer uma similar natureza de gestão da ideia do processo e do projecto que concentra, principalmente no artista e na obra, o sentido do que é, ou do que pode ser, o entendimento da arte contemporânea. O artista faz parte, então, da “(…) densidade de um continuum não censura-do, que nem começa nem termina com qualquer decisão ou acção da sua parte”, na opinião de Robert Rauschenberg[5]. O que poderá significar, talvez, que, se a arte começa com o artista, não termina com a obra. Cada vez mais a obra, que se socorre de múltiplos processos, linguagens, estratégias, e expressões, será a possibilidade de uma lógica de simulta-neidades, de junções, de associações. De uma estética do absoluto passar-se-ia a uma estética da relação (que em Pollock e em Goldin não se suscita em óbvia separação de modelos), ou a uma estética da surpresa, como estética formulada por um pensar, mais do que formulada por um agir, enquanto sentido essencial de uma típica formulação discursiva, formal e instalatória, que se implementou decisivamente na segunda metade do século XX[6].

 

Na reciprocidade entre a liberdade e a relação reside, também, a aporia da arte: a da impossibilidade do absoluto. De um qualquer absoluto. Ou, ainda, a ideia de que o contexto, que se sobrepõe à obra é, de facto, o de um elemento radicalmente novo que condiciona as formas e as estéticas. Desta maneira, embora em suportes diferentes, assumem-se igualmente as contribuições, não só de Pollock ou de Goldin, como ainda de toda a segunda metade do século XX, no sentido de que um acréscimo pode significar o rumo ou certeza de um colapso eminente, e de lucidez de um equilíbrio instável. Justamente por via de um contexto, novo e radical, que nos remete para uma melhor compreensão da própria natureza da obra e do seu objecto.

 

Se eu investigo o fazer do que penso, e o pensar do que faço, então, estarei a investigar pelo lado interior e ou exterior do fazer (que o mesmo é dizer, do pensar). Isto é, a criação artística em pintura suscita-se, desde logo, como prática de um pensamento único sobre a coisa estética. E, neste contexto, a prática de um pensamento que também é teórico, de um pensamento que se implementa nos exclusivos actos de investigar e de criar. Actos que são apenas aparentes na sua divisão, na justa medida em que o que acontece tem que ver com o trânsito de um território, que existe na revelação de um caminho, enquanto acontecimento em estado de processo. Correspondendo a uma opção do método[7] o estado de processo será uma espécie de lugar, híbrido, de todos os lugares, incluindo os aparentes específicos lugares da investigação e da criação, lugares que mostram a realidade e a especificidade tanto da teoria como da prática.

Pelo que, a investigação artística deverá ser entendida, preferencialmente, no âmbito privilegiado da prática artística. Não havendo prática ou produ-ção artística dificilmente aquilo que se designa por investigação artística ficará reduzido a um âmbito restrito, híbrido e desfocado.

Por outro lado a prática artística pode e deve ser entendida como fazendo parte, integrante, do processo de investigação artística. Pensada na dimensão da própria prática artística, a investigação é a possibilidade de criação que, para além de potenciar o que pode decorrer da existência do objecto de arte, nomeadamente a recepção e a reflexão, críticas, permitirá a sua própria fundamentação, seja pela via do processo e do sistema de criação, seja pela via do contexto teórico - trata-se, assim, de investigação em, ou de investigação pelo lado de dentro, ou lado de cá[8].

 

A investigação poderá ser um modo. Não de uma consciência que possi-bilite comunicar, porque a investigação artística também não comunicará, mas de uma consciência que possibilite dar a conhecer os interstícios da acção de arte e, por essa via, a revelação de uma dupla vantagem: a de comunicar uma recepção, e a de fundamentar uma produção.

 

A investigação parece questionar-se em estado de relação com a criação artística. E, ao acontecer, muitas perguntas podem ser feitas. Desde logo, a da investigação implícita, ou explícita, à criação. Isto é, a da possibili-dade de uma investigação em arte, tanto do lado de cá ou do lado de dentro da arte, como do lado de lá ou do lado de fora da arte?

 

Com a investigação artística o que parece acontecer é a procura do certo, do definitivo, do inequívoco, do objectivo e do limite. Desta maneira, a investigação permitirá apenas tornar mais nítidos os contornos do objecto, ou participar da construção dos referidos contornos? Mas, qualquer que seja o âmbito da intervenção da investigação na criação, o que está em causa é a relação entre as naturezas da periferia e do centro da pintura, ou a maior ou menor aproximação ao objecto pictórico. A investigação em arte permite construir e sistematizar a consciência da possibilidade de se escrever, ou descrever, o que é, ou o que poderá ser[9].

 

A investigação não substitui a arte enquanto instância de criação. Exceptuando a possibilidade de se pensar a investigação artística como estratégia induzida aos mecanismos de criação, compreendidos e comprometidos que estão com a essência da criação, a investigação instalada no interior da lógica e do processo de criação artística pode ser parte integrante da construção da obra[10].

Em contexto de criação artística a pintura é certamente momento de investigação (como o é, também, em contexto de investigação artística a pintura acontecer como momento de criação), se equacionarmos a investigação essencial como investigação teórico-prática. Investigação esta onde se localiza a permanência de um objecto autoral em estado de viagem, de transição entre a revelação e a sugestão, entre a emoção e a razão. Viagem que é o mesmo que processo. Processo que é o mesmo que estar antes de ser. Fazer falar a pintura é afirmar o pintor em exercício de explicação do “porquê e como”.

 

Por isso: quando o processo e o projecto são os motores de toda a investi-gação, que articuladamente com a criação proporcionam relações de centro e de periferia, a investigação em arte parece ser o mesmo que arte em investigação. Pelo que a investigação em pintura é necessariamente teórico-prática. Onde certamente a estratégia operativa de uma qualquer metodologia será sempre processual, relacional e circular. Pelo que parece ser essa a única possibilidade da pintura e da (sua) investigação: a de se fazer falar e a de se fazer pensar[11].

 

Consequentemente, o processo e o pensamento permitem-se enquanto dimensões mentais e funcionais construtoras e possibilitadoras da realida-de que organiza conceptualmente a unidade entre investigar e criar, isto é, a unidade convergente entre investigação e pintura, que o mesmo será dizer, a unidade entre o pensar e o fazer a pintura, ainda que em estado de investigação, para que aconteça tanto a ruptura nómada como o lugar da intenção, respectivamente, nos contextos do processo e do pensamento.

 

 

3. caminho e metodologia

 

O caminho é o que orienta aquilo a que designamos de método ou de metodologia e que mais não faz do que caracterizar a especificidade do que é irrepetível – o exercício da arte e da pintura. Em caminho de projecto o exercício da pintura revela o processo autoral de uma certa itinerância dos objectos (picturais), nas suas progressões e regressões, nas suas sístoles e diástoles, nas suas rupturas e (des)continuidades.

 

A interrogação faz nascer um projecto de caminho, faz percorrer um caminho de viagem. E, como todos os caminhos e viagens, a imprevisibilidade do estar condiciona naturalmente a natureza do ser. O processo de criação, do domínio da acção e do visível, do objecto e do corpo que em imagem se dá, parece ser o modo que permite observar o artista e a obra em estado de relação, e a obra e o fruidor em estado de instalação (a instalação da obra é um projecto de resultado, é um exercício onde se dispensa o tempo, é um corpo de imagem que se insinua para além do olhar).

 

É impossível falar-se de investigação artística sem a presença organizada do que se designa por modelos ou metodologias de investigação. Sendo que na formulação de uma metodologia de investigação (será o mesmo que metodologia da criação?), o importante consistirá na descoberta de estra-tégias de investigação, ou modelos, que estejam de acordo com a acção artística enquanto referência nodular. O exercício da investigação em pintura, que é seguramente o da reflexão, tem como condição a actividade artística na sua expressão mais prática e ampla.

 

É importante que haja uma nítida percepção do que é ou do que poderá ser a investigação em pintura e dos seus precisos modelos de investigação, dos contextos dos temas e da viabilização da discussão dos mesmos em grupos, no pressuposto de que a investigação em pintura pode ser também do âmbito das migrações disciplinares, da relação entre investigação e ensino, e ainda da relação entre o pensamento e a comunicação (a investigação mediada pela comunicação, ou a investiga-ção suscitada como exercício de um pensar que liga, inevitavelmente, a teoria à prática)[12].

 

Uma metodologia de investigação implica a invenção ou criação de uma estratégia operativa. Por isso, o âmbito da arte condiciona certamente qualquer estratégia de investigação. Nomeadamente quando as supostas estratégias operativas se desejam implícitas a um objectivo primeiro de comunicação. O que nos faz aceitar o princípio de compatibilidade entre criação e investigação. Porque, no essencial, o que está em causa é justamente a tentativa de se compatibilizar a comunicação ausente (na arte) com a comunicação presente (na investigação). Por isso, compatibili-zar criação com investigação é desejar compreender, e realizar, as respectivas fronteiras e os correspondentes territórios comuns.

 

A circunstância da aplicação de um método que explicite o inexplicitável será sempre uma tentativa de aproximação ao objecto de arte. Apenas o exercício de uma aproximação, maior ou menor, à essência do que é a arte será compreensível, tendo em conta que a criação enfatiza mais o pensamento e a acção, e a investigação mais a observação e a enunciação[13].

 

Em contexto metodológico, a investigação em arte possibilita uma maior consciência crítica e criativa do artista: quando acontece pelo lado de dentro do objecto acontece como implícito possível de um processo que é do universo da criação. Quando acontece pelo lado de fora do objecto, acontece como explícito de um projecto que é do universo da investigação propriamente dita. Mas existe, ainda, a possibilidade da investigação acontecer pelo lado de dentro e pelo lado de fora, simultaneamente, o que permite pensar a investigação como estratégia de trabalho que se vincula à realidade da criação, onde a reflexão e a produção apresentam-se em estado de plena coabitação.

 

Podemos falar em metodologias mais indicadas, ou apropriadas, para transmitir e fomentar a pintura? Metodologias de investigação que permi-tem pensar e fazer a pintura? Parece-nos que não será possível propormos metodologias únicas ou exclusivas de investigação no âmbito da arte e da pintura. Dir-se-ia que, em matéria de investigação em pintura, existem muitas possibilidades de se construir ou estruturar uma dada metodologia. Uma dificuldade imposta desde logo pelo dilema: investigar em ou sobre. Para se acrescentar, de seguida, no campo da investigação em, um outro dilema: investigar a criação?[14]

 

Consequentemente, parece existir reduzida convergência sobre a diferença de investigação em e sobre, e as respectivas metodologias. Se o consenso em torno de uma investigação sobre é grande, porque justamente é a investigação que nomeia uma grande metodologia ligada ainda às ciências, o mesmo não se passará na investigação em, porque, para além de ser desenvolvida apenas por investigadores-artistas, é passível de especificidade que impõe necessariamente a existência de uma metodologia artística não normativa. Onde se concilie, de um modo sistemático, tanto o caminho do autor como (um)a metodologia do irrepetível.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

António Quadros Ferreira, Estudo 2, lápis e caneta de feltro sobre papel Almaço quadriculado, 16x43cm, n/d.

 

 

4. acto de investigar igual a acto de criar?

 

A investigação em pintura parece dar a ver e a conhecer tanto a criação como a recepção. A investigação que é inerente à criação é o mesmo que criação? E a investigação que é inerente à recepção é o mesmo que reflexão? Criação e reflexão é o mesmo que lição onde emerge a convergência singular e plural entre a investigação na criação, e a criação na investigação? A investigação em pintura dá a conhecer o acto de criar?

 

A investigação em pintura, que mais não é do que criação (em pintura) é, com efeito, a investigação de um território, amplo, de compromisso e de meio, de um território que se cumpre no intervalo entre o pensar e o fazer. Neste contexto, a dimensão expandida que comporta a investigação em pintura é, em boa verdade, a da investigação intermédia. Investigação que diz um modo operatório de se percorrer um caminho, de facto e de método. Um caminho que revela e mostra um processo que opera os modos possíveis de se realizarem relações reportoriais.

A investigação enquanto projecto, mas também o projecto enquanto criação, percorre um caminho que leva a lapidar um conceito, ou conceitos, implícitos à investigação em pintura. Isto é, de acertar uma definição, construída, de transformar aquilo que conforma a investigação como uma espécie de convocação de uma certa arquitectura essencial. Modo operatório que, começando por ser do âmbito do raciocínio, passa por ser, de seguida, do âmbito de um lugar, onde as dimensões histórica, interpretativa, e criativa, se fundem. Entre a utopia e a distopia, o processo de investigação percorre-se em singular perfil que à memória se liga, onde a sua cumplicidade com a criação artística é a que possibilita a construção de um discurso autoral, aberto e transversal, e que se apresenta, no fim, como projecto de promessa de acontecimento: a investigação permitirá, por isso, aproximar o retrospectivo com o prospectivo e, desse modo, potenciar o seu próprio universo de intervenção mais amplo.

 

O acto de investigar e o acto de criar podem corresponder, no limite, a uma mesma realidade e a um mesmo acto. Fundamentalmente o que é importante é tentar compreender a acção artística como acção global, isto é, como acção que é criadora, e que por ser criadora, é também uma acção investigativa. Por isso a definição dos objectivos e das metas a atingir passa, inevitavelmente, por aquilo a que designamos por investigar, compreendendo as dimensões possíveis do que pode ser o resultado do acto de investigar. Existe uma relação de procura e de descoberta do que é desconhecido. A investigação em pintura é a investigação diferente e do que é diferente: é a procura do vestígio.

 

Investigar e ou criar remete-nos, sempre, para uma consciência dos territórios artísticos que, entre o pensar e o fazer, se movem entre processos e projectos, em espaço de conciliação de narrativas e de discursos, de objectos verdadeiramente singulares: a consciência da investigação permitiria acrescentar consciência a factos e a acontecimentos que, desse modo, seria uma espécie de acrescento ou de extensão de uma inquietação onde a experimentação se opõe desejavelmente a uma dimensão de congelamento ou fixação. Muitas das vezes o que a investigação faz é traduzir fixando, limitando, comunicando. Mas a investigação que interessa é a que se insta e se funde como mecânica de uma natureza artística essencial.

 

Que hipótese teríamos em construir, pela investigação, um chão que assegurasse permanentemente uma configuração (mais) artística e poética?  Essa hipótese passará inevitavelmente pela adopção de terri-tórios de competência, ou territórios de acção[15].

 

A investigação artística, a que dá a conhecer o acto de criar, é a da reflexão do que se produz, mas também a da produção do que se reflecte. Investigar em arte é ensaiar a compreensão tanto da correspondência entre o estado de teoria e o estado de prática, como da correspondência entre o como se faz e o como se pensa. A investigação artística é, consequentemente, o como se organiza, mas também é o como se dá a conhecer: fazendo-se pensar e pensando-se fazer[16].

 

Existem diferentes formas de investigação em arte? Isto é, diferentes metodologias de investigação artística? Uma investigação que se pode situar entre a aplicação e a abstracção? E o processo que conduz à criação da obra de arte? É, de facto, do âmbito da criação ou da investigação? A contemporaneidade impõe-nos o ambíguo como condição da fusão dos territórios e das fronteiras, dos espaços e dos limites, das contingências e das liberdades. Por isso, as similitudes devem ser entendidas como momentos que advêm da necessidade de reflectir e de criar: de reflectir sobre a criação, e de criar sobre a reflexão[17].

A consciência da investigação que se procura para além daquela que existe implícita à própria pintura será sempre a da possibilidade de afirmação de paradigmas epistemológicos absolutamente novos. Por outro lado, e por-que é de metodologias de acção que se trata, não é possível a imposição exterior de modelos de investigação artística em arte estranhos à própria arte, porquanto o princípio do modelo estrangeiro ou exterior é, aparentemente, contraditório com o princípio da criação. Pelo que, em vez da ideia de modelo, é mais aceitável a ideia de estratégia operativa que intervém reiteradamente para se dar resposta a assuntos e ou a perguntas. O princípio da criação é o da liberdade, isto é, o do livre arbítrio, pelo que, a ideia de modelo investigativo enquanto regra de um sistema operativo e funcional parece ser impossível em arte.

 

Assim, falamos de formas ou de lados (no interior) da investigação artística. Formas ou lados da investigação (lado de cá e lado de lá) onde a comunicação é ou poderá ser uma instância mediadora e crucial entre o objecto da arte (que dispensa a comunicação) e o objecto da investigação (que necessita da comunicação). Não obstante, existe a função comuni-cativa. Função que junta ou aproxima, ou que separa ou distancia, as duas instâncias nucleares: a da criação e a da investigação. A metalinguagem da comunicação sugere-nos que a fronteira entre o lado de dentro e o lado de fora é absolutamente imperceptível. Fronteira que tanto separa como aproxima, e onde a comunicação parece influenciar decisivamente o trânsito entre o estado de criar e o estado de investigar.

 

De facto, investigar em pintura não é obrigatoriamente traduzir, por palavras, o que é ou o que pode ser a imagem pictórica. A palavra, podendo descrever a investigação enquanto constructo comunicacional, é manifestamente insuficiente e eventualmente impróprio: a investigação não se esgota, por isso, na palavra que diz a reflexão, ou na palavra que eventualmente prepara ou recepciona a produção. A investigação percorre outras metalinguagens, incluindo as que são portadoras do universo da criação artística. Por isso, a investigação artística só poderá acontecer, e sobrevi-ver, no interior do processo da criação, isto é, em estado de absoluta relação com o acto de fazer. A investigação artística supõe-se como instância de um pensar que se funde para um fazer.

 

A investigação em pintura, aquela que parece sobreviver ao objecto da pintura, será a investigação como possibilidade (acrescida) de um dar a conhecer: que comporta tanto o ver como o fazer. Por isso, investigação e pintura convocam-se de uma só vez, em estado de relação que condiciona e instala diversas proposições, a saber:

  • a relação entre investigação e pintura que se associa ao paradigma do pensar e do fazer permitindo supor diferentes universos constitutivos, por exemplo, o da circularidade entre investigação em pintura (que faz pensar a pintura) e o da pintura em investigação (que pensa o fazer da pintura).

  • a investigação da pintura que parece dividir-se entre a investigação teórica e a reflexão (sobre) e a investigação teórico-prática e a produção (em). Contudo, apenas a investigação em pintura é completa uma vez que se implica em caminho de muitas metodologias para se fazer falar a pintura.

  • a investigação teórico-prática que é igual a investigação que reflecte e que produz fazendo coincidir a investigação artística enquanto estratégia operativa de actos, nomeadamente de reflectir e de produzir enquanto actos de teoria e de prática simultaneamente integrados e convergentes.

  • a teoria artística e a prática artística que são intermediadas pela investigação cujo processo coexiste em caminho circular, ou caminho de desdobramentos entre processo e deriva, onde pensamento e acção (do projecto) e observação e enunciação (do repertório) complementam-se.

  • o fazer falar a pintura que tanto o é enquanto fazer pensar como enquanto pensar fazer, respectivamente, em explicação de uma periferia e em construção de um centro. O pensar e o fazer podem ser assumidos então como realidades articuladas entre si e portadoras do universo da criação artística.

 

(7.7.2015)

 

 

 

 

 

 

 

[1] “Elogio da Ingenuidade ou as Desventuras da Esperteza Saloia”. In “Revista de Portugal”, nº6, Lisboa, 1936; in “Obras Completas” (Ensaios I, vol.5); Editorial Estampa, Lisboa, 1971, p.121.

 

[2] Respectivamente, segundo o que pensam Alberti (século XV) e Valéry (século XX). Entre o que não se sabe e o que se sabe, ou o que se julga ser possível saber-se, a tríade é a relação constitutiva de 3 tempos: um tempo passado (anterior ou inicial), um tempo presente (que continua), e um tempo futuro (posterior ou final). Três tempos ou momentos de um todo, uno, que é o da afirmação do objecto artístico. O objecto artístico faz fundir na sua identidade um contexto intemporal, que omite o que lhe antecedeu, e que desconhece o que lhe sucede. Por isso, o fio do objecto é mais do que o objecto. É o que se especula ou investiga, é o que se produz ou cria. Neste sentido o objecto artístico, ao acumular, reúne e compõe (Alberti), e ao optar, deseja e condiciona (Valéry). Entre Alberti e Valéry é possível considerar desdobramentos outros do que se entende pelo acto de optar. Nomeadamente, as acções de subor-dinar, de diminuir, e de escolher (respectivamente, para Denis, Lhote, e Whisther).

 

[3] Por investigação intermédia julgar-se-á uma investigação fundamental, de meio, ou de centro, situada entre a reflexão e a produção, entre o pensar e o fazer, e que, por isso, fará a ponte entre uma investigação teórica e uma investigação teórico-prática. A investigação diz um modo operatório que percorre um caminho, de facto e de método. Um caminho que revela e mostra um processo que opera os modos possíveis de se realizarem relações repertoriais.

 

[4] Por isso, investigar em arte pressupõe a existência da arte, logo, da criação. O que quer dizer, investigar em arte pressupõe a consciência de um lado de cá ou de dentro – o da criação. Digamos que a investigação em arte como que prolonga, e como que contextualiza, as fenomenologias específicas da arte, mas não substitui-se, nem substitui, em acção, a condução de processos e de gestos de pensar e de fazer arte ou, pelo menos, de pensar o implícito fazer. Por estas razões, também, a persistência de um continuado equívoco – o do compromisso entre investigar e criar, enquanto lugares artificialmente autónomos.

 

[5] Citado por Oyvind Fahlström, in Art and Literature 3, 1964, p. 219.

 

[6] Entre Jackson Pollock e Nan Goldin o igual e o diferente surgem, embora com estratégias diferentes, como paradigmas cruciais de um modo de se pensar, e de se fazer, a arte contemporânea. Se toda a pintura é desejo de memória, a obra é, então, anseio de uma expressão seminal, expectativa de uma realidade nova (sem pintura, sem escultura?). Autores como Donald Judd, Frank Stella, ou Steven Parrino, convocam-nos para uma ideia de objecto em ruptura eminente com o princípio da superfície ou do plano. Nesta conjuntura, tanto a pintura invadiu o espaço do espectador, como este o realizou em relação com o espaço da pintura.

 

[7] Entre o estado de processo e a opção do método consubstancia-se a realidade da experimentação como território de meio (ou de intervalo) entre a investigação e a criação.

 

[8] A investigação não se sabe como caminho prévio – a investigação acompanha o interior da criação artística, e com ela se funde. De tal maneira que investigação e criação podem (e devem?) muito bem ser a mesma coisa.

 

[9] A investigação não diz, não fala, pretenderá apenas contextualizar, explicar, e funda-mentar.

 

[10] A investigação teórica é a investigação que reflecte? Em texto? A investigação teórico-prática é a investigação que produz? Em obra? Mas também em texto? A investigação teórica mais a investigação teórico-prática é a investigação que reflecte e que produz simultaneamente? Em texto e em obra? Se a pintura é o como se faz, também é o como se pensa. Pois, “il y a plus de vérité dans ce qui se cache que dans ce qui se voit”, como nos refere Gaston Bachelard. Investigar em pintura pode não ser traduzir, ou interpretar, por palavras, o que é ou o que pode ser a imagem pictórica: do que foi, do que é, ou do que poderá vir a ser.

 

[11] A palavra, podendo descrever a investigação enquanto constructo comunicacional, pode ser insuficiente e eventualmente imprópria: a investigação não se esgota na palavra que diz a reflexão. A investigação percorrerá outras metalinguagens, incluindo as que são portadoras do universo da criação artística.

 

[12] A observação, ou a experiência do artista-pintor, que apenas pratica o seu ofício, ou a experiência do docente-investigador, que partilha o seu conhecimento, por exemplo, são algumas das realidades bem diversas que podem enriquecer a diversidade da investigação, no sentido de se assegurar ou garantir um sólido corpo de pensamento reflexivo. Muitas questões ou caminhos da investigação em pintura podem ser identi-ficados face ao trabalho em rede ou em equipa. Tornar-se-á imprescindível a criação de um chão que permita a consolidação de algumas derivas no sentido de se organizar a construção de uma narrativa viável neste domínio.

 

[13] Por isso,  a invenção de uma metodologia mais não é do que a possibilidade de um meta-sistema enquanto organizador de actividades de mediação e de comunicação, onde o território da pintura deverá recorrer à comunicação verbal e não verbal para a possibilidade de se contar o indizível, se não enquanto certeza, pelo menos enquanto utopia.

 

[14] Falamos aqui de uma metodologia de investigação tendencialmente unicitária, de natureza científica. Por outro lado, investigar em pintura é investigar através de metodologias que desenvolvam o exercício da reflexão no ou do interior do objecto artístico – normalmente este procedimento implica o princípio da investigação teórico-prática. Aqui falaremos não de uma única metodologia de investigação, mas de inúmeras metodologias de investigação. Uma metodologia de investigação de âmbito teórico-prático tem que organizar-se tendo em consideração a natureza do fazer artístico, a natureza da estratégia operativa que consubstancia a coerência do discurso na produção pictural.

 

[15] Assim, e no contexto de uma realidade académica, é possível precisar 4 grandes territórios, de acção e de consciência, a saber: 1) investigação e criação, 2) prática pictórica e reflexão teórica, 3) estatuto do pintor e ideia de pintura, e 4) ensino artístico na escola de arte. Estes grandes territórios podem, por sua vez, crescerem como uma árvore, com ramos, e com troncos comuns, nomeadamente.

 

[16] Lugar de lugares, ou lugar de interrogações, a investigação em pintura pode e deve decorrer da circunstância de se ensaiar o seu pensar e o seu fazer em estado de relação e em estado de contexto com o acto de criação artística. Deste modo qual o grande desígnio da investigação em pintura? Fazer a pintura? Falar a pintura?

 

[17] Por outro lado, pensar o fazer pode muito bem ser o fio que une os dois lados da investigação em arte e em pintura. Lados esses que, relacionáveis, possibilitam ou impossibilitam fazer falar a pintura. Tendo em conta a complexidade deste assunto não é possível a existência, objectiva, de respostas absolutas ou certas, porquanto o que está em causa é do domínio da arte, ou com ele comprometido. Pelo que, não existe uma resposta por antecipação ou prévia pois, a investigação do que se cria é, ela própria, portadora de incerteza.

 

bottom of page