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Diogo Alcoforado

Da investigação em pintura, ou das suas possíveis bases conceptuais

 

 

Leonardo escreveu: “A arte é coisa mental”.

 

Leonardo era um pintor, um prático; mas era um prático especial: um génio. A sua Obra, a sua Vida e os seus múltiplos interesses, mostram-no claramente.

 

1. Há palavras assim: assumem um estatuto privilegiado, tornam-se referências, exige-se o seu emprego. São pesadas. Dificilmente se cuida de as definir. Servem para tudo. Investigar é, hoje, uma delas. E toda a gente investiga, diz que investiga, propõe que se investigue, exige a investigação. Há carreiras de investigador, em locais diferentes, e com funções diferentes, como é conhecido… e necessário. Dentro do  campo do ensino, por exemplo, a investigação, ou o que como tal se toma, tornou-se, a um tempo, uma obsessão e um alibi: quase nada se sabe, nada se fixa, tudo se ‘investiga’… Processo complexo, e insólito, -- e talvez endémico: é que, cedo, as próprias criancianhas são mandadas, por muitos e zelosos professores do ensino preparatório, e mesmo básico, ’ investigar’ (?); e perante tais propostas, os pais, espantados, vendo o menino na net, atarefados e perplexos, repetem: “Está a investigar!”.

 

2. Investigar, então. Ora, para que, na abordagem a qualquer aspecto do real sobre o qual uma investigação se proponha, e realize, é preciso que existam duas condições prévias: a primeira, que haja uma capacidade efectiva de colocar  um problema concreto a resolver, ou que um problema com tais características se apresente, e, a segunda, que haja um conjunto de dados, e de conhecimentos anteriores, estáveis, e aprofundados, capazes de abrirem caminho à citada resolução; e a estas duas condições prévias uma outra deve ser acrescentada: que haja vontade, ou urgência mesmo, na sua resolução, e a força suficiente para desenvolver todos os processos que a citada procura comporta.

 

2.1 Assim: não é possível confundir investigação com a mera aquisição de conhecimentos  básicos, estratificados e partilháveis, e capazes de servirem, eventualmente, a qualquer prática investigativa, posterior e desejada; nem é possível pensar que possa investigar quem não é capaz de detectar um problema concreto, de o circunscrever e definir, e de reconhecer a necessidade da sua resolução; ou que, pura e simplesmente, não possua as informações, e as ferramentas (e a força…) necessárias para esse exercício.

 

2.2. À aquisição de tais conhecimentos anteriores, básicos e estáveis, chama-se, prosai-camente, ‘estudo’. Implica capacidades de memorização, organização mental, discursividade lógica. Persistência, e rigor. Informação contínua e actualizada. Trabalho,-- e alguma paciência. E, até, uma capacidade de pôr questões pertinentes, de grau de dificuldade variável, e que, progressivamente, possam gerar disposições específicas para uma dinâmica, ou uma carreira, futura e nunca assegurada, de investigação.

 

2.3. Toda a investigação visa, em qualquer campo em que se exerça, a resolução do problema concreto que foi posto; e esta resolução tem de ser tão unívoca, e universal-mente inteligível,  quanto for possível. Tem, além disso, e consoante os campos em que se insere, de ser capaz de consentir uma eficaz aplicação e verificabilidade; e a verificabililidade é, hoje, como se sabe, um dos critérios fundamentais (ou: o critério fundamental) de definição da cientificidade de um processo.

 

2.4. A delimitação de um problema concreto a investigar, e toda a actividade investigativa que suscita, não impede que outros problemas insuspeitados, e novos, possam surgir, -- exigindo, eles mesmos, novas e diferentes investiga-ções. Do mesmo modo, nada impede que no interior de um processo investi-gativo complexo surjam factos e dados até aí desconhecidos, e que como património comum tenham que ser, desde então, considera-dos.

 

2.5. Toda a investigação, no seu percurso, implica a utilização de um método capaz de orientar e ordenar a procura a realizar, e de catalogar, compreender, e progressivamente organizar, os dados recolhidos, de forma estruturada e coerente. E se é inútil levantar, aqui, todos os problemas epistemológicos que qualquer método levanta, deve-se acentuar a afirmaçaõ da difícil neutralidade do sujeito perante os dados recolhidos,-- e o ‘salto’ que qualquer conclusão sempre constitui, e que apenas a possível e desejável ‘evidência’ , racional e lógica, apazigua.

 

Talvez não por acaso, as complexissimas investigações contemporâneas, em múltiplas e distintes áreas, utilizam computadores e programas hiperpode-rosos, capazes de armazenarem e cruzarem dados e estruturas reconhecíveis, e permitirem o aparecimento (?) de soluções optimizadas para os inesgotáveis problemas concretos que o processo a um tempo comporta e suscita.

 

2.6. Paralelamente a cada investigação específica, e ao problema concreto que a determina inicialmente, pode-se considerar a existência de uma ou de múltiplas teorias chamadas a colaborar(?) na sua resolução, constituindo como que um ‘pano de fundo’ sobre o qual – e, eventualmente: contra o qual… -- a pesquisa se vai desenvolver. Escusado aprofundar tal tema: remeto para Lalande, e para o seu Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie.  Mas não é possível iludir a distância que separa teoria e prática, por mais que uma e outra sejam realizações humanas e, logo, acções, marcadas por uma dimensão mental  irrecusável.

 

2.7. O que parece necessário afirmar é que tanto investigação como reflexão e constituição teórica implicam uma capacidade racionalizadora forte, uma frieza e um distanciamento que a analiticidade exige, um rigor lógico e organizativo acrescido, uma informação tão ampla quanto os materiais disponíveis consentirem, uma capacidade sintetizadora superior. Como já em 2.2 se indicava em relação à primeira.

 

3. Se há áreas em que a investigação tem um lugar destacado,e mesmo central,  elas são todas aquelas que a Ciência domina, ou determina. Constituindo-se a Ciência, com os seus principios organizativos e metódicos, e os seus critérios de universalidade, experimentabilidade, repetibilidade e verificabilidade sempre presentes, como o paradigma de qualquer exercício gerador e integrador de novos conhecimentos, qualquer investigação que de tais princípios se reclame para uma cientificidade mais ou menos explícita aponta. E se, para muitos, continua a haver alguma dificuldade em aceitar o carácter ‘científico’ das designadas Ciências Sociais e Humanas, tal decorre do facto de dificilmente, nos campos por elas abrangidas, os citados critérios se poderem utilizar: elas permanecem alheias a uma neutralidade objectiva sempre buscada, impõem uma necessária consideração do(s) sujeito(s) concreto(s) como temas  – e obstáculos… -- para qualquer investigação, e o simples (e quando possível… ) tratamento estatístico de cariz matemático dos dados recolhidos, com as suas conclusões numéricas, surge como tendencialmente perturbador, se não mesmo ‘falseador’ (?)…, de uma realidade tão mutável como essencialmente inapreensível.

 

Por outro lado, dificilmente também, e pelo seu próprio estatuto, podem as ditas Ciências Sociais (e Humanas…), ou quanto na sua órbita gravita, abrirem-se à utilização de instrumentos tecnológicos sofisticados, invasivos ou de observação e detecção verificável, ou à realização de experimentações sucessi-vas: e isto basta para que um território diferente se estabeleça, com regras autónomas mas, também, com a dificuldade de atingir resultados estáveis e unívocos.

 

3.1. A um outro nível, e  no limite, se se pôde falar já da Filosofia como ‘ciência’ (v. Husserl, E., “A Filosofia como ciência de rigor”), encontramo-nos, necessariamente, num terreno movediço: esta formulação é tão importante como ambígua, e encontra a sua radicalidade na estrutura do sujeito (transcendental, ainda … ) cognoscente no seu exercício de abordagem do real que toda a posterior Fenomenologia mais não fará que  aplicar e desenvolver; mas, com todas as suas virtualidades operatórias e culturais, que cada um de nós,  a  um ou outro nível, partilhamos, ela não parece consentir qualquer tipo de investigação ‘distanciada’, no que esta contém de fria objectividade colectiva, -- nem dispensa uma abertura hermenêutica de contínuas e incontornáveis  reverberações.

 

3.2. A esta luz, toda a problemática essencial que a Arte coloca torna-a, pelas suas próprias condições de aparecimento, desafiadora e, mesmo, tendencial-mente afrontadora, de qualquer investigação sistemática e com foros de cientificidade -- se dizer isto não é, já, pleonástico… A Pintura não é excepção. Ao longo de milénios foram produzidos objectos que são nosso património comum: milhões e milhões de objectos; e se qualquer objecto, como diz Marcel Mauss, é “um sistema de significações”, desde o mais simples ao mais complexo, cada objecto que, hoje, designamos como obra-de-arte, é-o também: mas ele excede qualquer circunscrição possível de ‘significações dizíveis’ para se abrir ao inacessível extremo que a sua forma constitui, para superar qualquer possibilidade de discurso que o tente reduzir a um sentido unívoco e universalmente partilhável. A ‘polissemia’ continuamente referida da obra-de-arte é o modo possível de afirmar a ‘décalage’ existente entre a forma, na sua singularidade obsessiva, algumas informações mais ou menos evidentes que dela imediatamente decorrem e a consciência do fundo abissal de que irrompe, e que na sua materialidade cripticamente se inscreve; e se é possível tentar exercícios contínuos de aproximação aos objectos já construídos, aos meios e circunstâncias que os viram surgir, às possíveis tensões e projectos, ideológicos ou não, que animaram o seu autor, a forma resiste com a dureza irredutível da sua presença.

 

É evidente que, quanto se disse, não impede a realização de determinados tipos de investigação em torno de aspectos variados da Pintura, de índole bem diversificada: investigações históricas, de tipo biográfico ou não, investigações filosóficas, investi-gações sociológicas…, que as Ciências Sociais e Humanas acolhem e distribuem. Ou, até, de modo bem mais específico, e particular, investigações no interior de cências ‘puras’: quimíca, ou física, ou… Datações, atribuições de autoria, evoluções estilísticas,…, são ocupações de múltiplos autores, muitos deles bem conhecidos; resta saber se um artista pintor, criador (ou produtor…), terá em tais questões interesse real, ou continuado, ou os conhecimentos básicos que lhe permitam partir para esse tipo de ‘investigações’.

 

5. Se, como é evidente, a produção artística (a prática artística; ou a criação… ), difere da abordagem dos objectos que outros constituiram, ou mesmo daqueles que o próprio autor constituiu já (a reflexão crítica racionalizadora e consequente… ), não creio que qualquer ‘investigação’ possa aumentar a ‘consistência teórica’ da produção, -- nem, e muito menos, permita ‘ tornar a obra de arte mais polissémica’. De facto, entre a criação e a reflexão teórica há uma diferença essencial de posicionamente; e se é possível encontrar alguns poucos artistas criadores que são, também, excelentes críticos, ou teóricos -- é preciso reconhecer que eles mesmos confessam, directa ou indirectamente, a necessidade de suspensão de um dos seus domínios de exercício, e das exigências específicas que o marca, quando abordam o outro. A sua abertura teorizante constitui-se-lhes, sempre, uma dificuldade, ou uma exigência de desdobramento, para eles inquietante. E se encontramos, no campo contempo-râneo, criadores capazes de discorrerem sobre a sua obra, ou sobre os princípios que a informam (e enformam…) e de constituirem, mesmo, um corpus teórico  extreammente importante e de amplitude variável (para não ir mais longe: de Almada a Nadir Afonso, de Pomar a …; ou de Bazaine a Tapies, de Vasarely a Mathieu, de… ), tal decorre não de investigações programadas, academicamente controladas, ou exteriormente propostas e sancionadas…, mas de uma exigência vital multímoda,de uma ampla cultura genérica e por eles mesmos problema-tizada, e que desemboca, necessariamente, nas mais ou menos longas construções testemunhais que são, a um tempo, explicitações de si e partilháveis compromissos.

 

6. Dizer isto significa dizer que a maioria imensa dos criadores em arte (pintores, escultores,… ) age no interior de uma relação sempre difusa com um meio cultural tão amplo como, a muitos níveis, inapreensível na sua radicalidade, -- e em que procura, apenas (?), constituir objectos pessoais, distinguíveis e referenciáveis, de acordo com as obsessões que vivências concretas determinam, e com algumas referências electivas e as oportunidades conjunturais que possui. E, logo, nesse meio, mais procura: pelos objectos distinguíveis, distinguir-se, -- com todas as implicações materiais e subjectivas que daí decorram.

 

7. Não creio, assim, que qualquer investigação programada, de indole teórica, consinta acrescentar, só por si, um mínimo de dimensão polissémica a uma obra pictórica em realização; e isto, por uma razão simples, e essencial: toda a dinâmica teórica tende a diminuir a ambiguidade de qualquer campo complexo e polissémico, tornando-o inteligível e, no limite, unívoco e partilhável, -- enquanto a produção pictórica tenderá a tirar o seu poder actuante do próprio carácter ambíguo que a atravessa, consentindo mesmo que todos os esforços reflexivos que sobre ela depois se façam mostrem, apenas, a sua importância acrescida como polo detonador de tais exercicíos.

 

8. “Eu não procuro: encontro.”, -- escreveu Picasso numa frase célebre; Almada repetiu-a, algures, em “Nome de Guerra”. Nenhum deles cuidaria de inves-tigações aprofundadas, embora o segundo, circunstancial, mas essencial e existencialmente, as tenha feito, já tarde, para a realização das suas cons-truções numérico-formais de matriz pitagórica. O problema, aqui, era vital, não académico.

 

9. Escrevi há dezenas de anos, e desde então o tenho dito, e ensinado, que toda a produção humana, todos os objectos produzidos pelo homem – entre os quais os objectos artísticos…-- se pautam, a partir da consciência da possibilidade agente, pelos princípios da eficácia, da especificidade, da economia e da duração; e que a distinguibilidade no interior de um dado campo cultural é a sua possibilidade de manifestação. É sobre estes princípios básicos que a multiplicidade e variedade dos objectos construídos pelo homem se alicerça, de acordo com os desejos e os fins (prático/mecânicos; mágico/simbólicos; lúdico/formais) que, de forma predominantemente interligada, visam suprir; os discursos, e os eventuais conceitos acessórios (de que mimésis, secularmente citada, é exemplo; e  diferença,  descontinuidade, simultaneidade, etc., e todas as categorias estéticas…) vêm depois.

 

(20.11.2014)

 

 

A  propósito  (ainda…) de investigação em pintura

 

Encontro, entre as posições expostas na 1º reunião da FBAUP,  a do Prof. Mário Bismarck, alertando para o facto de o termo investigação, centro articulador do processo iniciado pelo Prof. A. Quadros Ferreira, comportar entendimentos  vários, -- e, assim, necessariamente geradores de diferentes, ou mesmo dívergentes, modos de encarar a problemática em causa. Tenho de concordar com o Prof. Mário Bismark, cuja reflexão é avisada e importante: trata-se, antes de mais, de realizar uma clarificação terminológica, inicial, meio único de aceder a um possível entendimento sobre o alcance de quanto se possa discutir; e foi isso que procurei realizar no primeiro texto que propús, sem embargo de reconhecer ser ele algo duro, ou tão só claramente assertivo.

O que aqui, agora, escrevo -- e a partir do reconhecimento de nem sempre haver eu mesmo usado o vocábulo investigação no  seu sentido mais forte…--  não contraditando o texto anterior, que considero básico,  procura, tão só ‘investigar a investigação’ , ou quanto ela pode, ainda, e de um outro modo, comportar.

 

1. Tive de ler, recentemente, uma ‘tese’ de mestrado em Pintura onde o termo investigação era abundantemente empregue (‘a minha investigação’, ’a investigação que realizei’, ‘no decorrer da investigação’… etc., etc.…); e porque  o tema tocava(?) em algo que me fora, há muitos anos já, extremamente fascinante, encontrei-me a folhear algo que escrevera, nessa altura, a propósito de Merleau-Ponty: “Merleau-Ponty e a Pintura como interrogação radical do Mundo. – Algumas reflexões em torno de O Olho e o Espírito” . Ora, nesse meu texto, a propósito do ensaio célebre onde as contínuas relações do pensador francês com Cézanne atingem nuclear determinação, escrevi que a obra do mestre de Aix, na sua cerrada presença ao Mundo, “é (…) investigação persistente, atenção desvelante, construção significativa, -- aquela que o objecto plástico explicitará e, posteriormente, um discurso sempre aproximativo, a seu modo, tentará abrir e universalmente mostrar.” (tx. cit., p.14). E se acentuo, sublinhando-a, a expressão em causa: investigação  persistente, talvez pensasse, então, e sobretudo (mas não só…) nas séries famosas que realizou, desde as “Banhistas“ a “A Montanha de St.Victoire”, das múltiplas naturezas-mortas a… Mas é porque o escrevi, qualquer que tenha sido a amplitude de quanto me levou a usar, então, o termo investigação, que me parece necessário explicar, tão claramente quanto possível, o sentido do que é, ou foi…, assim, dito, -- e as implicações que tal passagem, embora algo inócua,  comporta.

 

De algum modo, e simplificando. Se é possível falar, de fora, e a posteriori, como é  necessariamente o meu caso, de investigação em Cézanne, nunca ele terá usado, em relação a si mesmo, e à sua atitude de pintor, tal termo, -- nem pensado em qualquer teoria capaz de orientar a sua procura: aquilo que ele realizava, com  natural e tão obsessiva como exigente simplicidade,  era uma prática pictórica de contínua e imparável atenção ao real circundante, buscando configurações hiperdensas, movido por uma tensão interior que era (seria?), a um tempo, carnal e metafísica, mas definitivamente alheia a qualquer  metodologia prévia, ou a qualquer esquema ideológico fosse de que matiz fosse, -- num percurso de total solidão e que apenas ‘em pintura’ se resolveria. Os seus textos, sobretudo as entrevistas com Gasquet, mostram-no bem, e continuam a ser uma fonte inesgotável de reflexões sobre a pintura e sobre o acto de pintar, -- por mais que o seu pendor crítico em relação à pintura de outros seus contemporâneos possa parecer excessivo, ou, até, de todo em todo injusto; e o fascínio de Merleau-Ponty pela sua obra, pelo seu ‘realismo heróico’, consentindo todos os desdobramentos (estruturalizantes, psicanalíticos, gestaltistas, …) apontam a dimensão abissal que a alimentava, e que o entrelaçamento carnal / metafísico radicalizava, -- enquanto a tornava  tão singular como irrepetível, sem que qualquer teoria a pudesse antecipar, ou potenciar. Dito, ainda, de outro modo: a  dita investigação (?), em Cézanne, é um processo agónico,  ‘corpo a corpo’ com o mundo, sem termo ou solução encontrável e apaziguadora, sem qualquer método organizativo e codificado, e em que cada momento, cada vivido (para usar linguagem da fenomenologia… ), abre para um novo movimento possível e para uma nova elaboração configurante, ela mesma matriz e desafio para outras configurações. Um “realismo heróico”, como atrás referi, e para usar expressão sua. E falar, assim, a propósito de Cézanne, de investigação, é uma forma metafórica, apenas metafórica, de falar de um combate que nenhuma teoria orienta -- ou que, mais ainda, se torna combate porque jamais aceitará que qualquer teoria o organize, ou justifique. Ou reduza. Para ele, central, definitiva, era a condensação que um outro termo, múltiplas vezes encontrável nos seus escritos ou conversas, concentra: realização, -- com todas as potencialidades que, na sua aparente banalidade, veicula.

 

2. Esqueça-se, agora, Cézanne. Fora, assim, da sua forma mais dura e consistente, o vocábulo investigação, dita pelo próprio ( ou por alguém alheio à prática pictórica…) pode assumir ‘nuances’ variáveis, e, algumas, perfeitamente triviais: “Vou á papelaria investigar os papéis que lá têm… “; “Vou usar este material e investigar o efeito que dá… “; “Vou investigar onde mora  X …”; ou uma infinidade de outras do mesmo tipo… -- são formulações correntes, da vida comum, e que não permitem a utilização ‘forte’ do termo. Correspondem a expressões que uma prática quotidiana incorpora, e esgotam-se no seu exercício circunstancial; e mesmo que possamos pensar que aquele que diz que vai ‘investigar’ os efeitos de dado material na execução de uma determinada pintura, ou conjunto de pinturas, ou…, possa dizer que está a realizar uma investigação, -- talvez se deva acrescentar que não será este o sentido ‘forte’ que ao vocábulo se liga. Este tipo de investigação(?) sempre foi realizado por todo e qualquer pintor, ou escultor, ou designer, ou…, faz parte da sua experiência, e experienciação…, pessoal, é quase configuradora da sua possibilidade de dominar os meios e materiais do seu exercício, talvez  mesmo, e nos melhores casos,  de conquistar um estilo e de compôr uma perspectiva de Obra; e só pode ser avalizada pelo próprio, é alheia a métodos exteriores, não parece poder decorrer de conceptualizações prévias e determinativas, e dificil-mente permite, sequer, uma explicitação completa, e racional, e comummente partilhável, da aceitação ou recusa dos resultados a que chega.

 

Dito, ainda, de outro modo: não me parece ‘poder ser’ (e, menos ainda, ‘dever ser’…)  usado o vocábulo investigação, pelo menos no seu sentido mais forte…, para aquilo que são as experiências normais de atelier, ou para os exercícios diferenciadores capazes de gerarem, pela amplitude das escolhas e das virtualidades pessoais, uma acrescida potencialidade  dos objectos produzidos. De facto, esta diferenciação tenderá a decorrer, muitissimo mais, de uma disposição particular constituinte, ocasional e profunda, do próprio artista-produtor, do que de uma qualquer prévia organização mental, racionalmente constituída, e visando a conquista de uma singularidade controlada, e contro-lável; e, depois, num plano diverso e sempre um pouco aleatório, e dependendo até, por vezes, de algumas capacidades extra-artísticas (a capacidade de afirmativo self-marketing, de exposição e obtenção de induzidos apoios críticos, de disseminação relacional, de… ), da sua possibilidade de inserção num campo cultural que permita o maior ou menor reconhecimento externo dos objectos produzidos e, a partir daí, das eventuais dimensões múltiplas de leitura que eles suscitam.

 

3. Poderemos pensar ainda numa outra dimensão do vocábulo investigação: quando os objectos produzidos, esboçados ou embrionariamente projectados, e o percurso constituído para a sua execução, se torna base para uma tentativa de conhecimento do próprio executante, -- num processo que alguns autores tendem a considerar essencial, e que os surrealistas, de algum modo, acentua-ram. Processo íntimo, privado, ele é, simultâneamente, produtivo e involutivo, e marcado por uma espacialidade impartilhável: a que o auto-conhecimento (?), com toda a sua contínua fluidez,  comporta; e quando este percurso se instala e desenvolve, ele arrasta um conjunto de problemas para quem o exercita, ou sofre … e que, no limite, pode conduzir à suspensão da actividade produtiva, pelo esgotamento de uma tensão geradora de formas novas e inquietantemente exigentes, ou pelo cansaço que advém do reconhecimento da impossibilidade de compreensão radical de si-mesmo pela abordagem das formas constituídas. A este nível, quase que se poderia considerar a produção plástica (ou outra do mesmo cariz…) como uma mediação instrumental para um processo não só de catártica equilibração – como sempre terá sido… -- , mas de apaziguamento total de tensão pelo conhecimento racional (?)  de si mesmo, com a correspondente, e procurada, acalmia… A psicanálise, ou algumas das suas vertentes, nos seus afãs hermenêutico-terapêuticos, sabem-no bem …

 

4. Se esta acepção do vocábulo investigação pode ter este âmbito a um tempo essencializante e perturbador, a sua consideração pode permitir chamar a atenção para uma outra vertente, bem diversa, mas que creio importante considerar: a dos novos artistas que, hoje, escolarmente, são chamados a fazer ‘Teses’ académicas, geralmente de mestrado…, em tempo e com temas progra-mados, ou resultantes de escolha que – salvo raras excepções….--- nenhuma base sólida tende a sustentar. Exercícios de conjuntural necessidade, cujas consequências não vão além do elementar cumprimento de objectivos conhecidos, eles surgem, em geral, como penosas e quase inúteis construções,  superiormente sancionadas, e, enfim, acolhidas.

 

Ora, é tendo em conta esta afirmação, problemática e, talvez mesmo, provoca-tória, que uma outra prática poderia, creio…,  assumir um carácter ilustrativo e informativo tão amplo como (para futuros e ‘reais’ investigadores…) importante: a proposta aos jovens pintores, escultores, etc… , da contínua escrita, e manutenção, paralelamente à sua prática produtiva, de um ‘Diário’, ‘Diário de bordo’(?), dir-se-ia…, -- em que tudo quanto fosse quotidianamente lido, visto, executado, pensado, recusado,…, fosse sendo fixado em sucessivos lances, tão clara e honestamente quanto possível, de modo a constituir-se, um dia, e se disso, e nisso, houvesse necessidade e interesse, um terreno amplo de referên-cias, encontros, relacionamentos que, de outro modo, para sempre se teriam de considerar perdidos. Mais: o carácter polissémico  de qualquer obra, partindo da diferença radical que expõe, alimenta-se de informações laterais, de remetências, de enfrentamento e problematização do terreno em que a obra irrompe. Dito de outro modo: a polissemia, sempre, e necessariamente, ambígua , surge, necessariamente também,  como resultado de uma atenção e de um esforço do espectador sobre o objecto visado, e decorre da sua capaci-dade de reflexão a partir do que é visto e tendo por base uma informação tão ampla quanto possível quer sobre o meio em que se encontra quer sobre aquele em que tal objecto pôde ser constituído. E é por esta razão, pela exigência de uma consciência informativa alargada, qua a polissemia tende a opôr-se, quase radicalmente, a qualquer aceitação e/ou valorização da obra de arte na base de mecânicas aplicações categoriais, e convencionais, de base estática, e de que a tradicional categoria estética de Beleza é matriz; e , isto, não porque a categoria de Beleza deva, ou possa, ser abolida, mas porque ela terá, hoje de ser vista de um modo diverso daquele com que, pelo menos até Hegel, foi geralmente entendida. Ou dita…

 

Mas, e por exemplo: será a Obra de Delacroix identicamente forte, e aberta-mente sugestiva e problematizadora, para quem tiver lido o seu  ‘Diário’, e para quem o não tiver feito? Ou a obra de Van Gogh, ou de Gauguin, ou…? Ou  a de De Stael? Ou de Warhol? Ou…? --se se desconhecerem os seus escritos, longuíssimos ou restritos, os seus comentários, as suas cartas, os seus gostos ou afectos, os…, e o meio em que foram produzidos, as inquietações que suscita-ram, os problemas que houve que enfrentar? Ressalvadas todas as distâncias, os exemplos podiam multiplicar-se; e esta fixação(?), embrionária embora, de uma ‘aventura pessoal’ irredutível, interior ao espaço da própria prática artística, na sua dinâmica operatória e realizadora, a mostrar exaustiva e terminalmente como Prova, -- constituiria um  projecto muito mais significa-tivo do que algo que venha a surgir, apenas,  pelas  suas limitações, como mostra irrelevante de uma aparência de Cultura, resumida ao verniz de algumas estranhas citações inconsequentes, apanhadas ao acaso, muitas e muitas vezes contraditórias e inexplicáveis. Definitivamen-te: a Cultura exige-se reflexiva e ampla, erudita e crítica, globalizante e integradora  -- e nunca apressadamente construída na base de informações limitadas e avulso, de sites da net apenas transcritos ou referenciados, ou de dados conjunturais sem, necessariamente,  qualquer possibilidade de enquadramento analítico.

 

Comecei por, a propósito de um texto meu, muito antigo, citar Cézanne. A leitura dos textos do pintor que, perante o Mundo, e paralelamente ao desenvolvimento da sua Obra plástica, podia declarar, com um misto de orgulho e humildade, ou de crença ou humor em relação às Instituições: “Eu sei, eu sei, isto é apenas uma interpretação. Eu não sou universitário.” – são um alerta importante. Sobre aquilo que pode caber, e sobre o que pode não caber, numa investigação em Pintura. Pintura que é, actualmente, um Curso interior à Universidade, -- e formação básica de artistas que são, hoje, licenciados. E, por tais razões, e ao invés de Cézanne, universitários.

 

(16.6.2015)

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