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Domingos Loureiro

Projecto artístico e identidade pessoal

 

A relação entre a evolução de um projeto artístico e o desenvolvimento pessoal é substancial, numa contiguidade em que o primeiro se constrói com matérias semelhantes à do segundo. O projeto artístico, principalmente no que se observa atualmente, está vinculado à construção da identidade do seu autor, nas suas conceções pessoais, emocionais e intelectuais. Este ponto de vista, aparentemente simplista, pode revelar de que modo o autor é na atualidade divergente daquele que se concebeu no passado e como essa pode ser a chave para o desenvolvimento de padrões de compreensão dos projetos artísticos e uma consequente organização dos interesses, bem como a formulação de possíveis modelos de apoio no ensino e investigação artísticos.

 

Historicamente, o artista assume a autoria já num período muito avançado, embora isso não signifique de que tomava o domínio total da criação da obra, tendo em vista que habitualmente trabalhava dentro de um conjunto de premissas técnicas e temáticas que lhe eram impostas (i.e. a bidimensionalidade, o tema, a função, a técnica). Sabemos que o Modernismo assenta exatamente no questionamento destes limites e das suas consequências, promovendo diversas mutações, nomeadamente com a desvalorização dos modelos ideológicos e temáticos, bem como a contínua reformulação dos significados de obra e autor, tendo em vista uma total autonomização e liberdade das práticas, dos significados e das conjunturas. Factual é, também, que nas últimas décadas, as práticas artísticas, nomeadamente na pintura, se tem assistido a um persistente surgimento de novos autores e novas linguagens, que parecem manter uma dupla conexão com a História da Pintura: assumindo-a ou refutando-a. Vejamos casos concretos: Michael Borremans (Bélgica, 1963) assume um total fascínio por Velasquez e Manet com reflexo no seu universo pictórico e projetual. Katharina Grosse (Alemanha, 1961), por outro lado, parece desligar-se de referentes, propondo possibilidades de intervenção que assumem indiferença pelos limites, numa possível ideia Kraussliana de expanded field da pintura. Certo que a possibilidade de pensar num campo expandido da pintura significa o conhecimento do contexto e das definições, mas a direção é a da rotura, e nesse sentido, o projeto assenta na refutação da História da Pintura.  

 

O próprio termo pintura é colocado em questão, permanecendo, com todas as limitações, como definição por meio do uso pelos intervenientes, ou pela necessidade de algum dogmatismo em enquadrar as práticas quer pelo aspeto formal, quer de conteúdos. A exemplo da amplitude de hipóteses, a publicação Vitamin P: new perspectives in painting (Phaidon, 2002) compila obras de mais de uma centena de pintores onde se opta por organizá-los por ordem alfabética e não por interesses ou características, o que evidencia a dificuldade em contextualizar e dispor os autores e os projetos. Mesmo em relação à seleção, não se identificam critérios rígidos que contextualize, mas por um conjunto de critérios flexíveis que misturam mercado, promoção, impacto, currículo, formação, origem, em doses muito diversificadas.

 

Em Pintura Redux (Publico/Serralves, 2006), Delfim Sardo opta por dispor os autores em grupos de interesses e práticas, numa tentativa de os situar, mesmo que na maioria dos casos esses entrosamentos não existam para além de similaridade aparente e fosse possível reorganizar aqueles mesmos autores de outro modo, dada a amplitude do universo projetual de alguns deles. Os modelos mais comuns de organização e divulgação dos projetos artísticos são frequentemente definidos por regras básicas como ordenação alfabética ou origem geográfica, percebendo-se a inevitável debilidade em encontrar traços comuns entre eles. Certamente que podem existir similaridades entre estéticas e práticas, mas é cada vez mais difícil de identificar os limites das práticas artísticas atuais. Possivelmente não exista ainda o espaço de recuo que permita ter uma visão coerente do que se está a passar, já que a História de Arte necessita do tempo para assimilar os intervenientes e as práticas, mas é visível que as dificuldades apresentadas hoje a um editor, que o leva a organizar alfabeticamente os artistas que divulga, irão originar certamente muitas outras dificuldades na ordenação em capítulos da História.

 

O obstáculo em compreender quais os limites, quais as estéticas e os conceitos da pintura atual, evidencia um conjunto de questões meritórias que devem ser analisadas, nomeadamente Como perceber quais as matérias a tratar quando se definem os Planos de Estudos no Ensino Artístico; Como se analisa a arte atual? ou Com que matéria se prepara um futuro pintor ou artista?

 

Nesta medida, em comparação com as primeiras décadas do século XX, onde se observa a proliferação de propostas e um estilhaçamento cada vez maior das práticas e dos conceitos, percebe-se que o problema é atualmente mais complexo, dada a enorme dificuldade em encontrar um ponto de partida comum, contrariamente ao que sucedida no Modernismo.

Comparativamente, na atualidade, parece sobressair o interesse pessoal do artista, aquilo que Joseph Beuys designara por motivação, evidência simplista, mas eventualmente central na compreensão do que se tem sucedido. Ou seja, se os projetos são definidos com diretrizes totalmente personalizadas, que atuações e definições se podem encontrar na arte de hoje, sem se cair numa ideia primária de que cada um faz o que lhe apetece? A motivação, como Beuys define, exige vontade e exigência. A dificuldade está em perceber de que modo é que estas expressões serão aplicadas.

 

Importa salientar que a escolha resulta da presença de opções, pelo que se pressupõe uma existência para além do próprio. Como em todo o conhecimento, a maioria das decisões resultam da reflexão e, por isso, da presença e interferência do outro, quer forma, quer ideia. Por isso encontramos muitos autores que parecem dar continuidade a uma genealogia da História da pintura e outros que parecem romper com ela. Contudo, em ambas, a História desempenha uma participação basilar.

 

Nesse sentido, a formação desempenha o papel de transmissão de matéria preexistente, quer seja da História da Pintura, quer dos processos básicos para o desenvolvimento humano, porque inclui a maioria dos dados necessários para a vida em sociedade, na convivência e na adaptação do ser humano ao meio.

 

A formação é crucial para a integração em sociedade do sujeito, tal como para o seu desenvolvimento intelectual. Ela tem uma estrutura normativa, assente em regras, esquemas e conteúdos gerados por outros, possibilitando aceitação ou recusa por parte do indivíduo. Isso acontece pelo conhecimento e decisão de rotura ou não com as normas que lhe foram apresentadas.

 

No caso da pintura, hoje, é visível uma liberdade de opção bastante maior do que no passado, notando-se uma diluição significativa do poder da tradição. Contudo, maior liberdade não significa melhor escolha e melhor resultado. Veja-se o exemplo dos estudantes de arte: no momento em que lhes é pedida uma proposta individual de projeto, habitual nos últimos anos do curso, a tendência mais comum é que estes realizem algo que está diretamente ligado com outro autor, quase plagiando, ou inversamente, repudiando todas as referências e enveredando por processos muito desorganizados e desconexos. Se no primeiro caso corresponde a um processo de orientação convencional, com um referente óbvio, no segundo exemplo resume-se o modo como o estudante repudia (ou desconhece) a tradição e envereda por dois caminhos distintos: ou reage à formação ou atua pela afeção.

 

A atuação mais emocional é frequentemente resultado de desconhecimento, negação da regra ou atuação casual. Neste caso, observa-se frequentemente uma valorização da componente emocional, a que designaremos de gosto, e que pode assumir diversos aspetos que vão desde o interesse por algum tipo de matéria (i.e. textura, cores, plasticidade), até soluções estéticas que derivam totalmente de qualquer aprendizagem realizada. São comuns temáticas bucólicas, gestualismo desarticulado, uso desadequado das matérias e ferramentas, aplicação arbitrária da cor, composições desequilibradas, entre outros, normalmente associados a um estado de satisfação emocional momentânea.

 

Em certa medida, o gosto também resulta de algum tipo de formação empírica ou ideológica, mas refere-se a uma atuação frequentemente centrada na emoção, num processo profundamente sensualista, e pouco reflexivo. A motivação que orienta o artista pode, certamente ter origem nesta componente emocional.

 

Um terceiro aspeto que se considera importante é o discurso, ou seja, aquilo que se tenciona «comunicar», tendo a base em muitos fatores externos e internos. O discurso desempenha uma função essencial no modo como intensifica a motivação, já que é frequente que esta esteja associada a uma ideia que se tenciona transmitir ou propor para reflexão. Ele é resultado da acumulação de informação externa, do seu processamento e reflexão individual. No caso da pintura e da arte, o discurso ocupa uma posição fulcral na arte do século XX e XXI, atingindo o seu expoente com a arte conceptual ou com a arte ligada a diversos movimentos políticos e sociais, exemplos de processos em que a mensagem se sobrepõe à forma, ou em que a forma está totalmente conotada com uma mensagem.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Em resumo, a pintura manifesta a presença destes três aspetos: a formação, o gosto e o discurso. O primeiro é composto por um conjunto de dados e normas apreendidos; o gosto, componente emocional e frequentemente irracional; o discurso, como resultado de reflexão e intenção de comunicação. Um quarto aspeto, o corpo, não foi ainda referido, mas certamente contribui para o desenvolvimento e decisão sobre cada um destes aspetos. As competências próprias e o seu desenvolvimento serão fundamentais para qualquer artista e definem muitos dos dados anteriormente referidos. Veja-se a importância de aspetos como o género, a orientação sexual, a fisionomia ou a motricidade. Torna-se ainda mais importante quando a fenomenologia é essencial para os autores.

 

Percebe-se que o que está em causa é o desenvolvimento pessoal, a identidade, na eleição e doseamento dos componentes que fazem parte da prática artística e da pintura. Isto é, se o sujeito depende da motivação para o desenvolvimento de um projeto sólido em pintura, então esta deve estar associada aos seus interesses pessoais, aqueles que compõem a sua própria definição identitária. Ou seja, o projeto artístico tem atualmente mais a ver com a identidade do autor do que com o contexto e, por isso, a atenção a este aspeto deve estar na base de qualquer formação ou de qualquer interpretação artística. Mesmo quando se identifica a presença dos elementos externos, será através do filtro pessoal designado pela definição identitária do próprio que os veremos.

 

Recuperando as questões apresentadas no início do texto (Como perceber quais as matérias a tratar quando se definem os Planos de Estudos no Ensino Artístico; Como se analisa a arte atual? ou Com que matéria se prepara um futuro pintor ou artista?) considera-se que a resposta possível estará no cruzamento de dados que têm a sua origem no contexto, mas principalmente no modo como o sujeito os traduz numa complexa fórmula que reúne dados oriundos da formação, do gosto e do discurso, fortemente influenciados pelas características e competências físicas próprias.

 

Trata-se certamente de um processo complexo e de difícil tradução, mas que pode encontrar reflexo no modo como a Psicologia trabalha questões identitárias, nomeadamente através do Self Dialógico, um processo de co-construção assente no diálogo entre o indivíduo e outro (que poderá ser o próprio), em que tudo aquilo que considera essencial para a sua própria noção de agência é encontrado por reflexo. Este processo possibilita não só ao sujeito tornar consciente e sólida a sua própria noção de identidade, como permite desenvolver competências onde se considera menos apto. Por outro lado, como resulta do diálogo com o outro, será possível de identificar quais esses referentes e os contextos onde estão inseridos, permitindo caracterizar e introduzir-se  nesse mesmo universo ou num conjunto de universos. O reflexo permite ao sujeito ver de fora as diversas questões que esteja a analisar, o que lhe possibilita uma maior consciência dos fenómenos e focar-se em soluções, ultrapassando e compreendendo as razões que estiveram na base da problemática.

 

Em síntese, o projeto artístico e a identidade pessoal estarão intrinsecamente ligados servindo de base para o esclarecimento dos conteúdos e da praxis do artista. Mais do que possibilitar o esclarecimento, permite perceber como atuar sobre possíveis lacunas ou competências menos desenvolvidas, ou outras excessivamente ativas. Dessa forma seria possível desenvolver a conceção de um Plano de Estudos que visa esta associação e responder de modo mais assertivo com os interesses pessoais de cada estudante, trabalhando competências e conteúdos de acordo com eventuais lacunas. Propiciando que este desenvolva cada vez mais uma obra sólida em que o que tem a dizer e o modo como o vai fazer estão em sintonia, não só com os interesses pessoais, mas com interesses de grupos de sujeitos com interesses semelhantes. Isto é, contrariamente a um processo de ensino, em que o que é apresentado pode ou não ser acolhido, procura-se atuar de modo orgânico dando ao estudante a informação de acordo com os seus próprios interesses. Não se trata certamente de um processo em que só se ensina o que o estudante quer, mas se for possível identificar quais os aspetos identitários mais importantes do sujeito, as matérias podem ser apresentadas de modo a que tenham uma atuação mais eficiente. Isso permitiria não só aceitar os aspetos com que mais se identificasse, como também atuar contra aqueles que considere menos relevantes ou contrários aos seus interesses. Uma maior solidez nos diversos níveis que compõem o projeto artístico deverá resultar numa obra mais sólida e com a qual o autor se sente mais envolvido e motivado.

 

Considera-se que um estudo sobre a relação entre o projeto artístico e a identidade pessoal poderia ser de enorme eficiência e, certamente, corresponder à complexidade dos processos e fenómenos pelos quais a pintura e os pintores atuais se têm debatido. Nesse sentido, um estudo conjunto entre a pintura e a psicologia, nomeadamente através do Self Dialógico poderia responder a um amplo conjunto de questões, mas principalmente preparar um leque de ferramentas a disponibilizar futuramente quer via ensino, quer para analistas e interessados na compreensão da pintura atual.

 

 

 

 

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