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Filipe Rocha da Silva

Observatório da pintura

 

 

1. Antecedentes pictóricos.

Qualquer palavra existe pelo seu presente, que inclui também o passado e expetativas para futuro.


A Pintura é hoje um conceito multiforme, com o qual um grande número de praticantes das artes ainda, para bem ou para mal, se identifica. Embora se fale muito em Pintura expandida, ela não implodiu, nem explodiu ainda.


Desde os alvores conhecidos da atividade humana ela assenta numa forma de fazer, com determinadas caraterísticas físicas, químicas e técnicas,  implicando atividades motoras e uma intencionalidade da parte do executante, que tem variado ao longo dos séculos, mas que, apesar de tudo, revela uma notável persistência.

Essa forma de fazer revela hoje ecletismo de processos, visto que se podem obter resultados parecidos partindo de inúmeros meios tecnológicos.


O ponto de partida tecnológico não perdeu no entanto a sua relevância e atualidade, visto que muito do pensamento filosófico e crítico contemporâneo parte justamente dessa forma caraterística e histórica de especificidade técnica,  que determina aquilo a que Foucault chamou uma arqueologia dos saberes e ao qual Siegfied Zielinsky conferiu uma feição mais tecnológica.[1]


Quando falamos em Pintura não nos estamos a referir portanto à forma de obter um resultado específico, visto que este se diluiu nas contaminações do mixed media da última metade do século XX, mas sim a considerar uma tradição multissecular, na sua inesgotável e singular unicidade.


Esta ensina-nos que a Pintura nunca deixou de se renovar, embora manifeste também ao longo da sua existência uma persistente continuidade, o que obriga a uma análise cuidada no sentido de poder antecipar de que forma irão esse poder de renovação e continuidade funcionar no futuro.

 

 

2. O que não é Pintura?

 

Surgem assim algumas perguntas, cuja resposta poderia constituir o cerne de uma pesquisa consequente e frutífera em Pintura:

 

Como caraterizar e definir os fatores que levam a falar nesta continuidade plurissecular a que podemos chamar Pintura?

 

Quando tantas novas tecnologias surgiram e se disseminaram durante o século XX nos vários tipos de mercado, porque razão alguns continuam a utilizar pintura como um conceito com relevância atual? Será um fenómeno saudosista ou pelo contrario uma opção justificada pelos constrangimentos do presente e as perspetivas futuras?

 

Face a estas questões fará sentido continuar a utilizar esta palavra para compreender práticas artísticas contemporâneas?

 

A palavra Pintura aplica-se tanto a manifestações do passado pré – histórico como fenómenos do século XXI. Continuará a palavra a ser apropriada ou a própria vastidão do passado pictórico faz com que o conceito tenha perdido o seu sentido no presente e deve  ser apenas reservado para manifestações ocorridas nos outros séculos?

 

Desde os anos 80 do século XX, acalmada a utopia revolucionária, a dialética passado – presente tornou-se mais atuante. Os factos desenterrados pela história da arte e outras ciências vêm sendo exaustivamente glosados pela arte, através da aplicação de ferramentas e metodologias não – científicas, que passam a constituir prática artística presente. No entanto, as formas artísticas baseadas no mimetismo ou utilização lúdica de teorias ou formas do passado provocaram também uma fadiga, uma sensação de déjà vu, que só pode ser curada por um inovador rigor concetual.

 

De que forma interage essa, a que chamamos Pintura, com outros media?

Começando por ocasião dos grandes progressos técnicos por parecer ultra-passada ou mesmo substituída, a Pintura tem uma notável capacidade de flexibilidade, resiliência que lhe permitem sobreviver, infiltrando-se nas outras tecnologias e formas artísticas, obrigadas a utilizá-la como referência estética.

 

Face à necessária contaminação mútua com as outras tecnologias artísticas, de que forma consegue a pintura manter a sua individualidade? Qual o papel se algum da manualidade ou artesanalidade? De que forma a pintura poderá receber contributos de uma tendência low tech que se pode detectar em determinados artistas e movimentos, que tentam associar os processos técnicos avançados a preocupações com a contaminação negativa, desmaterialização e desumanização, causadas por uma sociedade consumida por um acelerado processo de massificação e alienação

 

Apesar da tridimensionalidade, a Instalação pictórica será Pintura?

Os textos de Clement Greenberg sobre a pintura foram certamente um dos pontos altos da critica do século XX e tiveram continuidade nas posições de Michael Fried, por exemplo a sua polémica com Donald Judd e Robert Morris sobre a teatralidade, eles dentro do chamado minimalismo defendiam antes os specific objects . A incorporação do espaço exterior e do próprio espectador nos media pictóricos é um tema que continua a ser atual, tendo em vista a dicotomia entre contemplação e experiência participativa. Qual o tipo de interação com o espectador que o pintor tem em vista quando desenha e define o espaço pictórico?

 

Seria importante também, mesmo permanecendo no interior das técnicas tradicional e pacificamente consideradas como sendo Pintura, incluir também o estudo comparativo das alterações e diferentes características dos materiais determinadas pela indústria e, confrontando por exemplo os efeitos no resultado final a partir da forma como as tintas de secagem lenta se sucederam depois do renascimento a tintas de secagem mais rápida, e a forma como as primeiras foram também substituídas em grande parte a partir do século XX por novas tintas de secagem rápida, as chamadas tintas plásticas.


O pigmento e a cor têm tradicionalmente um papel determinante no fenómeno pictórico. Qual a sua evolução e definição atuais? É conhecida a revolução cromática ocorrida a partir do final do século XIX, talvez tão importante para a pintura como a difusão da fotografia. Como prossegue hoje em dia esta ontologia da cor e como se vai relacionando com as novas obras que vão marcando posição no panorama contemporâneo.

 

 

3. Pintura Digital ou Versus Digital?

 

A chamada Pintura Digital estará na continuidade da prática pictórica?

Num período em que o digital e a chamada inteligência virtual dos meios de comunicação globais domina o mundo, é especialmente pertinente perguntar se a chamada Pintura Digital se insere ou não no domínio da Pintura, será ou não vista amanhã como integrando a sua história?

 

Como referi numa comunicação ao encontro And Painting? Realizado na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa [2] os sistemas digitais de formação e manipulação de imagem parecem decalcados a partir da tradição da pintura, tanto em programas que mimetizam o processo de trabalho dos pintores como mesmo no tradicional Photoshop. com o seu sistema de layers, que parece replicar as velaturas utilizadas na pintura a óleo.

 

O sistema que vai do preenchimento dos pixéis até à impressão será mais um conjunto de media pictóricos, como a tempera de ovo ou a encáustica, ou pelo contrario estamos a falar de uma tecno – lógica totalmente diversa?

 

O modo de exposição é claramente distinto, visto que o modo digital, não permitindo por enquanto uma durabilidade física minimamente fiável, convida pelo contrario uma exposição célere e incontrolável, viral.

 

A dúvida está em determinar se esta especificidade se estende ao modo de produção.

 

 

4. Para um Observatório da Pintura.

 

Seria interessante iniciar o que de uma forma um pouco simplista se pode descrever como uma renovada discussão, que vem dos tempos de Leonardo da Vinci e do início das academias, sobre as paragone , utilizando para o balizamento da Pintura, para além da Escultura, os specific objects de Judd e Morris, a teoria dos de Ferreira Gullar que foi influente em Hélio Oiticica, Aluíseo Carvão e outros[3], e ainda outras instalações, a Fotografia e o Cinema pictóricos, e todos os outros media digitais.

 

Seria um Observatório da Pintura contemporânea, que elegeria casos concretos e muito diversos desde que significativos, comparando-os com outros do passado.

É necessário considerar, como alguém terá dito, que provavelmente a Pintura não existe o que há são pinturas. Recordo por exemplo a citação de Oiticica: “A Pintura e a Escultura acabaram. Não é dizer que parei de pintar. Acabei com a Pintura, o que é totalmente diferente.”

 

O Observatório permitiria clarificar, do ponto de vista do pensamento, aquilo que se convenciona chamar Pintura, lançando mais luz sobre as práticas artísticas contemporâneas.

 

 

5. Contributos para algumas respostas.

  

Falei com alguém que já esteve na Bienal de Veneza que está neste momento a decorrer que me disse que a pintura não está praticamente presente no evento.

 

Independentemente do facto de nos principais acontecimentos da vida artística contemporânea alternar esta constatação e a sua contraria, a própria dúvida sobre o facto denuncia a presença da pintura.

 

Neste sentido, a identificação da Pintura como paradigma, como sistema de análise relativamente à arte contemporânea, tem sido constantemente reafir-mado e restabelecido.

 

A Pintura funciona com uma metodologia não tanto relativamente ao autor, um eclético que ultimamente tem sido indiferente quanto a questões de ortodoxia dos meios, mas antes em relação ao espectador e ao seu prolongamento, através dos teorizadores críticos e/ ou curatoriais.

 

Trata-se de analisar aquilo que se nos depara, através de um filtro constituído por aquilo que a pintura criou e desenvolveu no consciente / inconsciente coletivo, através da sua extensa prática:

 

 

1. O repositório de imagens criadas reproduzidas incessantemente pelos media contemporâneos.

 

2.O manancial de emoção ou de associações de ideias subjetivas despertadas pela Pintura junto de cada membro do público.

 

3. A consciência própria do “pintor” em utilizar materiais sensíveis e ideias adapta-se mais ou menos àquilo que se consubstancia como o estereótipo da Pintura.

Por outro lado este configura-se como um sistema fundamental para análise mesmo de obras que claramente não são “pinturas”, como acontece por exemplo em obras de fotografia ou de cinema -  consideradas pela crítica como “pictóricas”.

 

A diversidade que a Pintura apresenta, incluindo sistemas claramente distintos de tratar por exemplo o desenho, a luz, ou a cor, contribuem a configurá-la como uma ferramenta e uma forma eficaz e essencial para perceber e descrever o mundo que se nos apresenta, nas suas contradições.

 

 

6. Do horror à tecnologia ao tecnofundamentalismo

 

Os ofícios artísticos e as corporações da idade média, que foram depois substi-tuídas pelo academismo, eram sistemas de autodefesa afirmando a superiorida-de ou preservação de segredos laborais úteis.

 

A especificidade de cada método era afirmada como um valor superior, partindo do princípio de que no topo estava a a espiritualidade desmateriali-zada, tal como era afirmada em Platão.

 

Outros movimentos e momentos artísticos, como romantismo ou o conceptual,  consideram que o conteúdo é o essencial da obra artística e por isso não faz sentido determo-nos sequer a discutir a matéria ou técnica, que idealmente tenderiam a desmaterializar-se.

 

Não se trata hoje de discutir, como nos séculos XV e XVI, qual é a técnica mais mecânica ou pelo contrario a mais próxima da criação divina, mas sim de tratar

como diverso o que é diferente, por existir já uma perceção nítida sobre a íntima penetração e inseparabilidade entre forma e o conteúdo.

 

Como escreveu Oscar Wilde no prefácio do Retrato de Dorian Gray, toda a arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo.

 

A técnica existe. O processo e o sentido estiveram no entanto sempre presentes em todos os movimentos artísticos, sendo essencial considerar ambos para uma apreciação completa da obra.

 

Pintura continua a ser um riquíssimo repositório de memorias técnicas, estéti-cas e humanos, pelo que a sua imperscrutável matéria contem sombras múlti-plas que é urgente continuar a iluminar.

 

(15.6.2015)

 

 

 

[1] Foucault, Michel. 1969. The Archaeology of Knowledge. Trans. A. M. Sheridan Smith. London and New York: Routledge, 2002. ISBN 0-415-28753-7. Zielinsky, Siegfried. 2002. Zielinski, Siegfried and Carlos D. Szlak (Translator). Arqueologia da mídia em busca do tempo remoto das técnicas do ver e do ouvir (Annablume). ISBN 978-85-7419-634-3.

 

[2] Rocha da Silva, Filipe. 2014. Da Paleta ao Ecrã.  In And Painting? A Pintura Contemporânea em Questão, ed. Isabel Sabino, 171 - 177. ISBN: 978-989-8771-09-4. Lisboa: CIEBA-FBAUL.

 

[3] Ver o excelente número de October correspondente à Primavera de 2015 com muita matéria interessante sobre Oiticica o Neo – Concretismo na América do Sul.

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