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Fátima Lambert

“… compreender a investigação em artes [pintura]: variantes de uma breve [in]visibilidade”

 

 

 

..."On ne décrit pas ce qu'on voit tous les jours ; on ne juge pas à propos de mettre en relief des moeurs, des usages, des aspects que l'on connaît depuis l'enfance."

Albert Babeau, Les Voyageurs en France, depuis la Renaissance jusqu'à la Révolution[1]

 

Em articulação a reflexões trabalhadas no contexto da educação estética – acerca da conceção dos paradigmas e da configuração do gosto, acerca dos discursos e escritas adjacentes aos territórios da estética/ filosófica, entre outras matérias ponderadas em contextos complementares – deu-se continuidade considerando o aprofundamento de tópicos específicos. Assim, destaca-se a convicção de que é incontornável, impossível produzir esses conhecimentos sem exigir, pelo que se convocam:

  • a existência incontornável de pesquisas objetivadas e rigorosas;

  • o reconhecimento e legitimidade científico da investigação em arte e ciências da arte;

  • a(s) visibilidade(s) formalizada(s) perante a tríade o “autor” entre a “academia” e “público”. 

 

Pormenorizando: em termos do que se convencionou designar por #investigação científica# ainda persiste na convicção de alguns investigadores/académicos - de áreas científicas que durante muito tempo foram quase as “únicas detentoras” dessa prática – um certo irreconhe-cimento quanto às atividades análogas desenvolvidas no âmbito das poéticas e/ou fundamentações da praxis artística, tanto quando acerca da sua “pós-produção/presentificação”. A própria terminologia Ciência da(s) Arte(s) viveu episódios que oscilaram entre a idolatria, a negação, o apego e a rejeição liminar. A incongruência existe no termo, se atendermos a definições de Arte e de Ciência que se posicionam como irredutíveis, quer a nível metodológico, quer a nível de produções e atividades. Assim, não interessa neste contexto extrapolar reflexões sobre essa dualidade, pensando que às Artes estão implícitas teorizações sobre a génese e concetualização, quer prévias, quer posteriores às obras que se disponibi-lizam para apropriação por parte dos seus fruidores/recetores.

Ou seja, optou-se pela abordagem de questões pontuais, mas por certo relevantes. Lembre-se quanto é pertinente ultrapassar, em termos “administrativos”, uma certa obsoleta postura “cega”, a título de exemplo, detetável quanto à não inclusão (ainda) de itens relacionados à criação e conceção artística e à produção cultural em alguns formulários de centros de investigação, bases e plataformas científicas, repositórios...

Trata-se, pois, de um estudo que avança desde há anos e a partir do qual se isolaram e se sistematizam dados, convergindo e contribuindo para a presente causa investigativa – Bases conceptuais da pintura…

 

Recentemente, em meados do passado mês de junho, Éric de Chassey realizou no Collège de France, uma conferência intitulada “La peinture, ou comment s'en débarrasser. Les peintres face à la fin de la peinture (1965-1975)[2]”. O historiador de arte francês assinalou a necessidade da pintura se pensar em/por si mesma, avançando assim sobre as contenções, as restrições que esse quase dogma contemporâneo impôs por parte de alguns seguidores. No caso, desenvolveu as suas considerações incidindo numa década que entendeu exemplar quanto ao relato dinâmico de casos autorais específicos, justificando a sua movimentação no panorama historiográfico e crítico da pintura próxima-contemporânea.

Relembre-se que a pintura na história ocidental se inventou quase sempre sobre si mesma, ora impulsionada pelos ventos a favor, ora contrariando as marés mais adversas. Nalguns momentos, para corresponder a argumentações radicais, pareceria que a pintura se recolhia em modo de paragem, experimentando uma quietude que transpunha a condição da sua materialidade. A paragem da pintura é uma suposição absurda, somente credível para quem ambicione abarcar o mundo, impondo uma previsão megalómana e fantasista.

Fê-lo quer na sua iconografia substantiva, quer na compilação da escrita dos pintores. Este corpus teórico-prático compila estudos incontornáveis que suscitam e continuarão a provocar leituras independentes e desapaixonadas. As tipologias de discursos escritos demonstram a diversidade de conhecimentos, objetivos e concretizações que os artistas-pessoas-autores sempre assumiram, acordados aos seus próprios desígnios. Assim, isolam-se textos diarísticos com evocações axiológicas de natureza vária (como a fazer, como a pensar, como a dar a ver, como a reconhecer, como a dar a conhecer, como propiciar a sua fruição, como impulsionar a sua compreensão, …) Por outro lado, considerem-se livros de volume muito significativo, com propósitos aforísticos, pedagógicos, educacionais, estéticos, historiográficos, poéticos, filosóficos, ideológicos, sociológicos, éticos… todas elas instituindo-se enquanto leituras fundamentais em prol da estruturação de um pensamento-conhecimento rigoroso e multidisciplinar. Os endereçamentos que subjazem a esta escrita de artista-pintor contextualizam-se nos auspícios e constrições dos seus tempos cronologizados, contribuindo para uma visão dirigida que se autonomiza das elaborações teóricas enxutas empreendidas por investiga-dores e especialistas fundais.

 

Dos manifestos vanguardistas (há vanguardas em tempos diferentes, como se sabe…não são exclusivas dos inícios do séc. XX), redescobrem-se os diários de Pontormo, antecedidos pelos escritos visionários das iluministas e poetas como Hildegarda von Bingen, passando pelos Sone-tos e pelas Cartas de Miguel Ângelo, os Cadernos (quasi secretos) de Leonardo, os escritos reunidos de Albrecht Dürer - para citar diretamente apenas alguns – sublinhe-se como, ainda hoje, muitos são os Tratados de leitura imprescindível para os estudiosos e especialistas. Basta evocar nas Estéticas do Renascimento os nomes de Leon-Battista Alberti, Luca Paccioli e muito significativamente, o português Francisco de Holanda. As veredas herméticas e esoteristas instigam os leitores e artistas mais enredados no âmago polissémico da pintura, outorgando-lhe adventos que frutificam e perduram.

Se estendermos as décadas, apercebe-se que uma a uma, em cada uma das décadas a partir de 1975 e até 2015, teremos 40 anos propiciadores de muitos dogmas, ambiguidades, (alguns equívocos) e paradoxos q.b. Se retrocedermos até aos finais de 1945, com o cessar da 2ª guerra-mundial, então são uns 70 anos bem preenchidos de heterogeneidade…e se retrocedermos até 1905…enfim, a situação complexifica-se mais e mais, chegando a uma situação ab origine que poderá ser simultaneamente a raiz para a compreensão e para a ambiguidade exponencial. No caso português, a autofagia nos 100 anos de Orpheu, podem acentuar as modificações ocorridas em Portugal, entre a ousadia e a timidez que se cruzam e intercalam até hoje. Todos estes fatos respondem à intempérie impulsiva da proclamação do fim da pintura. Todas as pinturas têm um fim…ou seja…têm um objetivo…; persistem pela sua integridade, pela reação que convocam nas sucessivas gerações, pelo confronto paradoxal, pela [não] coincidentia-oppositorum…

Já não é caso de se desgastar mais a morte da pintura. O seu propósito plural e metamórfico tem sido cumprido por pessoas de gerações que precisaram e souberam fazê-lo. Agora, o pensamento crítico, as razões e a intencionalidades da criação pictural são livres para se desenvolverem, em paridade às demais expressões/produções artísticas, subsumidas a princípios conceituais e estéticos consentâneos, heterogéneos por relação aos interesses e rigor exigidos pelos presentes.

 

Tudo depende daquilo que se precisa afirmar. A pintura historicamente é um território propício para irreverências, atavismos e estipulações, endereçando empastamentos axiológicos que, com frequência, se anulam, dissolvem ou adoram…

 

Todas as pinturas são de ação (action painting) e são campos de cor (colour field), também a pintura expandida – que pode ser tudo ou tanto que não será nada de dizível. Estar-se-á perante uma aporia introspetiva do pictural (relembre-se a argumentação de Jacques Derrida) e/ou perante uma estética que se conforma com o inominável, parafraseando Samuel Beckett?

 

A pintura poderá significar o desejo estético de presenças que possam ser reconhecidas: eis os domínios do representativo. Aquilo que é suscetível de ser representado ramifica-se em identidades e tipologias tão diferen-ciadas que a sua catalogação, de tão dificultada, quase se impossibilita...

 

A pintura quer aquilo que não necessariamente se traduza em morfologias decifráveis e/ou miméticas. Qual a substância, qual a matéria da pintura? Ao proceder às leituras que pudessem contribuir para sistematizar as “bases conceptuais da pintura” reconfiguram-se estudos convocando disciplinas complementares: antropologia filosófica, antropologia cultural [simbólica], iconografia, iconologia, …

 

Atualmente em Portugal, desde cerca de década e meia, têm proliferado, no âmbito de vários centros de investigação FCT ou não-FCT, projetos de investigação, cujo escopo reside/converge no que seja a pintura “hoje”. As motivações para o desenvolvimento de pesquisas que se convertam em investigações frutíferas são incontroláveis, viajando entre princípios fidedignos e divagações que se podem apelidar de quase obsoletas ou inúteis. Todavia, a ausência de nominação da pintura como problema, por parte de alguns investigadores responsáveis significará, porventura, uma consciência da sua irremediabilidade…para quem seja algo detrator ou pouco adepto…

A nostalgia – por parte de autores, teóricos, diletantes e/ou produtores - pela pintura serve de alibi a muitas discussões que se desenrolam, sob fundamentos dispersos e apetências interesseiras por si só. Isto é, o panorama corresponde ao que sucede com qualquer outro tema de abordagem e/ou discussão. O conceito de pintura exala a maior sedução. Isolem-se os termos de “nostalgia”, “sedução”…que dela exalam e contaminam num crescendo optimizador:

|o que é? | o que foi? | o que deve ser? | se ainda existe? | se ainda é? | se deveria ser? | se já desapareceu?

| o que já é pintura? | o que não é pintura? | como se materializa? | como se desmaterializa? | é uma cosa mentale? | é uma coisa real? | é uma coisa imaginada? | é uma coisa idealizada?

|qual a sua função? | quais as suas funções? | qual a sua evidência? | qual a sua intenção? | qual a sua justificação?

| quais as suas fronteiras? | quais os seus limites?

|deve residir na definição literal? | deve expandir a sua definição?

| deve ter conteúdo semântico? | deve ser polissémica? | deve ser explícita? | deve ser cifrada? | deve ser uniforme e unânime? |deve ser heterogénea?

| deve agradar? | deve entreter? | deve fazer pensar?| deve ornamentar?

| deve estar/ser comprometida? | deve ser/estar ideologizada? |deve ser neutral?

| (…)

 

(1.9.2015)

 

 

 

 

[1] In file:///C:/Users/ESE/Documents/2013.14.VIAGENS.BR.UFP/livros/les%20voyageurs%20en%20france....pdf

 

[2] Disponível in http://www.college-de-france.fr/site/antoine-compagnon/guestlecturer-2015-06-25-16h00.htm

 

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