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José Ramalheira Vaz

I. Intervenientes

 

Nota prévia:

Este texto é o primeiro capítulo de um escrito (não publicado) sobre as relações entre pintura e racionalidade. A identificação numérica de cada uma das suas secções (a primeira das quais é identificada com o nº 5) não pode ser entendida fora do contexto do todo dessa obra.

 

 

5. Comecemos por deixar claro o género de geometria de que se falará quase que exclusivamente neste texto, mostrando a seguinte imagem:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 1.1

 

O que é que é possível dizer de pertinente sobre ela, neste estádio preliminar do desenvolvimento do livro?

Comecemos pelo mais simples: parte da imagem é a reprodução de uma pintura conhecida como Flagelação, da autoria de Piero della Francesca (nascido aproximadamente em 1416; falecido em 1492); mede 58 por 81 centímetros e terá sido realizada à volta de 1454.

 

6. Outra parte é um conjunto de linhas pretas, que se sobrepõem às formas da pintura de Piero e da responsabilidade de um intérprete novecentista, Charles Bouleau.[1] (As linhas com traço descontínuo foram acrescentadas por nós, e são como que um suplemento inteiramente justificado pelo esquema usado por Bouleau, que contudo resolveu não as incluir na sua interpretação. As letras, da nossa responsabilidade também, explicar-se-ão a seu tempo.)

 

7. Estas linhas pretas são um caso particular de uma forma de abordagem, em que se pretende reconstituir, decifrar, definir, etc., aquelas que, por hipótese mais ou menos refutável ou irrefutável, teriam sido as opções de natureza geométrica do autor de determinada pintura.        

 

8. Nenhuma destas linhas é desenhada ao acaso. Todas têm que ser legitimadas. O que é que isso significa? Tal como um observador, mesmo não familiarizado com exercícios do género, poderá confirmar (e ao qual se pedirá que acredite no autor, no caso de não querer despender o pequeno esforço necessário para o fazer), não há nenhuma linha que não passe por um ponto legítimo, ou não parta dele. Mas o que é um ponto legítimo? É um ponto que resulta da intersecção de pelo menos duas linhas legítimas. Temos pois linhas a depender de pontos e pontos a depender de linhas. Como insulta evidentemente a lógica quem imaginasse poder concluir fosse o que fosse do emaranhado de conceitos em que linhas resultassem de pontos cuja existência seria afinal impensável sem elas, esclareça-se que não há falácia no que acabou de se escrever, a partir do momento em que se acrescente haver uma origem absoluta de todas as linhas e respectivas intersecções, e à qual se deve a legitimidade das últimas: exactamente os vértices do quadro (a partir do qual se desenham diagonais, de cuja intersecção deriva a teia de linhas mostrada) ou uma qualquer medida retirada dele, como por exemplo, o comprimento de um lado (no caso da pintura de Piero, a acreditar em Bouleau, recorre-se a ambos estes expedientes, cuja descrição técnica será deixada para mais tarde, entre 85 e 89).        

 

9. Para que servem linhas como as pretas? Para “ancorar” certas formas a determinadas zonas da superfície do quadro (por exemplo, tal como é documentado na figura 1.1, na linha vertical que parte de A “está” Cristo), ou para delimitar diferentes zonas do mesmo (outro exemplo, a linha vertical que parte de B separa o “exterior”/cena do lado direito, ocupada pelas três personagens em primeiro plano, do “interior,” do pretório onde que ocorre a flagelação). Esclarecer a necessidade de “ancoragem” e/ou de delimitação será um dos propósitos fulcrais desta parte do livro.        

 

10. Quer a nossa percepção que um mesmo conjunto de estímulos visuais possa ser interpretado de várias maneiras. O leitor não desconhecerá decerto o caso apresentado na figura 1.2, com que mesmo o folhear distraído de um qualquer livro de psicologia o terá familiarizado: aqui, uma mesma linha tanto pode ser vista como dois perfis ou como uma taça. Observe-se agora na figura 1.1 a linha que começa em C e termina em D. Esta linha é apenas um exemplo de um conjunto de outras, frequentes no esquema, que têm a propriedade comum de, para além de serem linhas desenhadas, digamos assim, sobre a pintura de Piero e, portanto, de estarem obviamente pousadas no seu plano, poderem ser interpretadas como linhas de profundidade, no contexto do mesmo género de realidades perceptivas que, no caso da figura 1.2, dão azo a que, em certas circunstâncias, deixemos de ver caras, para ver uma taça, ou deixemos de ver a taça, para ver as caras. Mutatis mutandis, voltando à figura 1.1, dir-se-á que, em vez de simplesmente vermos pousadas no plano da pintura tais linhas, as vemos também como se se diferenciassem internamente: na medida em que estruturam ou, pelo menos, acompanham aquilo que não temos dificuldades em reconhecer como componentes do cenário; ou seja, apresentam uma parte mais próxima do observador e outra situada mais ao longe (no caso da linha de que se fala, a parte mais próxima é aquela que o ponto C marca; a mais afastada, a que é definida pela intersecção dessa mesma linha oblíqua que parte de C com uma outra oblíqua, que parte de E). No esquema da figura 1.1, a maior parte das linhas desenhadas com traço descontínuo, da nossa responsabilidade, tem esta característica, assinalando a perspectiva de que Piero se serviu para edificar o envolvimento arquitectónico da Flagelação (repare-se, por exemplo, no lajeado do chão, ou no beiral da casa da direita).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 1.2

 

Retenha-se pois que teias lineares como aquelas de que se tem falado aqui a partir de 6 são versáteis, podendo, em função do contexto, ser dimorfamente percebidas como estando no plano e/ou lançando-se em profundidade — facto relevante muito principalmente em estilos que, como o renascentista (onde se inclui a obra de Piero della Francesca), envolvem aspectos “naturalistas” suficientemente imperativos para justificarem o recurso ao conjunto de ferramentas de pintura e de desenho desenvolvidos muito especialmente do século xv em diante, para assegurar a ilusão de que numa pintura “caibam” mais coisas do que a sua identidade como simples plano deixaria supor.

O leitor não ignorará que no rol dessas ferramentas há uma geometria especial, com que se faz uma perspectiva qualificada como central ou cónica (por razões de ordem técnica que não cabe aqui desfiar), recorrendo a procedimentos tecnicamente muito especializados; e não ignorará também que a principal propriedade óptica desta perspectiva é o facto de linhas de profundidade convergirem num ou mais pontos (designados como de fuga), situados numa linha a que se dá o nome de “linha do horizonte” e que, de facto, marca a altura dos olhos do observador/autor da perspectiva (no caso da figura 1.1, a linha do horizonte, não assinalada, seria uma linha paralela ao lado de baixo do quadro [chamada linha de terra] e que passasse pela intersecção das linhas oblíquas que partem de C e de E).

Clarifique-se muito bem o que acabou de se dizer, por ser o essencial deste ponto 10: temos por um lado linhas (geométricas, admitamo-lo sem grande custo) como as que se referiram em 6; por outro, acabámos de falar da perspectiva central. São geometrias diferentes (embora não incompatíveis), quanto mais não seja pelos diferentes pressupostos técnicos que pressupõem. Quem usa uma não necessita de usar a outra (embora não esteja proibido de o fazer), nem sequer saber que existe. Arrisquemos dizer uma coisa que, sabemo-lo, não poderá ser devidamente entendida fora do desenvolvimento que o resto do livro dará ao argumento: poder-se-á dizer que, grosso modo, a geometria do primeiro tipo não precisa de mais do que de um quadro para existir (repetindo o que já se disse na última parte de 9); a do segundo, de formas de cálculo muito próprias, cuja formulação e desenvolvimento exige outro tipo de premissas (exteriores ao quadro, se se quiser).

Imaginemos agora que quem se servisse da teia de linhas referida a propósito da figura 1.1 não conhecia a perspectiva central, ou não se queria dar ao incómodo de se submeter às suas injunções técnicas. Significaria isto que ficasse impedido de, por meios meramente lineares, assegurar a ilusão de que, na sua pintura, para além do plano pode haver também profundidade? Não. O que neste momento, aqui mesmo em 10, se está a pretender fazer é precisamente mostrar até que ponto é possível desenhar linhas “de perspectiva” (como as [CD] e [EF]) sem se recorrer ao aparato exigente de procedimentos geométricos como aqueles que a perspectiva central reclama. Em traços muito, muito largos, pode dizer-se que o conjunto de linhas referido em primeiro lugar constitui uma geometria de pintor, a perspectiva central, uma geometria de geómetra (desculpe-se o pleonasmo, que o contexto contudo justifica). É a primeira que este livro vai principalmente tratar, não a segunda (o que não significa que esta última, por razões muito próprias, que a seu tempo serão aduzidas, não mereça o desenvolvimento que de facto terá no capítulo iv, entre 67 e 78, no capítulo viii, de 236 em diante, e ainda nos dois primeiros casos tratados no capítulo ix). Fica assim explicado o motivo por que, na introdução, dizíamos que este livro trata de certos aspectos geométricos e matemáticos da pintura.

O caso de Piero, como veremos em 11, é um caso à parte; tudo parece indicar que não se tivesse satisfeito com as linhas mencionadas em 6, tendo achado indispensável suplementá-las com aquilo que apenas um uso avisado da perspectiva central poderia garantir (a perspectiva das linhas paralelas à linha de terra, no lajeado, por exemplo, não poderia ter sido desenhada sem tal). A regra, porém — e com isto introduzimos uma das ideias-chave deste livro — é que, provavelmente nem mesmo durante o Renascimento, os pintores renunciaram a servir-se preferencialmente de geometrias como as mencionada em 6, usando em proveito dos seus propósitos “naturalistas” tudo o que de dispositivos geométricos assim, ou parecidos (principalmente sob a forma de linhas oblíquas), pudesse contribuir para criar a ilusão da profundidade, e com o benefício complementar de, deste modo, ficarem dispensados de se ocuparem com aparatos geométricos que, como os da perspectiva central, são tecnicamente complexos e oficinalmente onerosos.  

      

11. (Um caso à parte)

Piero della Francesca é um caso à parte, dizia-se em cima. Piero viveu numa época que a posteridade se habituou a considerar racionalista ao ponto de imaginar haver como que uma colusão entre arte e ciência, que, no domínio da pintura, se teria manifestado sob a forma de um tributo entusiástico (se não mesmo maníaco, em alguns casos) a essa particular forma de geometria que é a perspectiva central. É conhecida especialmente a dedicação de Paolo Ucello (1397-1475) a isso — uma dedicação que, a acreditar no relato biográfico que dele nos deixou Vasari, roçava as estremas da desrazão. Muito provavelmente, Ucello tinha a imoderada tenacidade do amador. Mas Piero, ao que parece, tinha mais do que tenacidade: tinha saber. Dele, conhecem-se três tratados de matemática, em que era realmente versado. Isto distingue-o de todos os outros pintores renascentistas[2] — o que significa, vistas as coisas ao contrário, que não será possível levar a sério essa relação especial entre arte e ciência, a que tradicionalmente se reconhece o estatuto (e o valor) de componente fundamental do Humanismo renascentista, sem muitas reservas e precauções. Na verdade, é tão mistificador estipular uma relação assim no Classicismo do Renascimento como, inversamente, pressupor que, do Romantismo em diante, os pintores (ou os artistas em geral) tivessem sentido uma aversão profunda e visceral pela racionalidade. Como em tudo quanto é humano, há casos e casos, em todos os tempos e lugares. Piero é um caso de competência em coisas de matemática e geometria, e é uma excepção — acrescente-se, aliás, que não apenas no contexto do Quattrocento, mas no de qualquer época em geral. Não há nenhuma “lei” da história que estipule uma familiaridade por aí além dos artistas com a ciência (ou com a “cultura,” em geral). Escusado será dizer, isto é especialmente válido para o caso de áreas que, como a matemática, não são imediatamente acessíveis (se nos for autorizado aqui este eufemismo). Cabe à história (no sentido de ciência historiográfica) registar exactamente quem deu provas dessa familiaridade, e quando, no caso de ter existido efectivamente. A alternativa a tal registo é a ideia vaga, alada, sim, mas mistificadora — tão inconcebível como um pássaro que, ensoberbecido por voar, achasse humilhante ter patas. Teremos oportunidade de desenvolver e glosar este assunto ao longo do livro.        

 

12. (Questões de interpretação)

Concluamos esta introdução, aflorando aquele que é o mais espinhoso de todos os aspectos a tratar aqui. Voltando a 6, dizia-se aí que a teia linear sobreposta à reprodução da pintura de Piero era da responsabilidade de um intérprete novecentista. Como informação devido ao leitor, o que assim se disse é correcto e irrefutável. Mas é uma informação que não pode nem deve andar desacompanhada do seguinte conjunto de perguntas, que, aliás, são pertinentes em relação a qualquer manobra interpretativa: com que direito o intérprete em questão (Charles Bouleau) propõe tal teia de linhas? Qual a relação entre essa “leitura” e a realidade? Do esquema em causa, terá Piero deixado provas, que Bouleau se teria limitado a exumar, ou indícios, que a interpretação de Bouleau teria arriscado decifrar? De que tipo é a fronteira que separa interpretação de alucinação? Ténue? Inequivocamente marcada?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 1.3

 

A resposta a interrogações deste tipo nunca é tão incontroversa quanto se desejaria. Antes de mais, não é possível garantir com certeza absoluta que esquemas como o apresentado em 6 vão além do que vai uma hipótese mais ou menos débil, mais ou menos robusta. Não obstante, os esforços exumadores ou decifradores de Bouleau (ou de intérpretes equiparáveis) não são um empreendimento vão, condenável, ou fraudulento. Aliás, os resultados das pesquisas de Bouleau, no domínio a que dá (talvez um pouco duvidosamente) o nome de “geometria secreta dos pintores,” acompanharão não poucas vezes — e, quase sempre, pelos melhores motivos — o desenvolvimento das ideias do presente livro,[3] e de que o leitor, nesta fase inicial, não poderá ter mais do que uma apreensão incoativa. Há de facto razões ponderosas que tornam justificável em certas circunstâncias o uso de determinada geometria nas fases preparatórias de uma pintura, muito principalmente quando a geometria em questão é a descrita em 10 como sendo de pintor. Veremos de seguida quais são essas circunstâncias; retenha-se porém desde já que são elas que legitimam esforços interpretativos como os de Bouleau; e, demais a mais, sublinhe-se não ser possível dizer que essas circunstâncias justificam o uso de ferramentas geométricas sem simultaneamente se pressupor a capacidade de decisão de alguém dotado da sensatez e do pragmatismo indispensáveis para reconhecer as vantagens que a adopção dessas ferramentas lhe traz. Na expressão geometria de pintor, o determinativo é tão importante como o substantivo. Isto parece um truísmo, mas de facto não é. Pode falar-se de uma geometria que não é de ninguém. Pode falar-se da geometria do Universo ou de uma nuvem sem impropriedade, mesmo que nem uma coisa nem outra tenham sido objecto de uma criação deliberada. Na verdade, é possível falar de uma pintura assim. Há quem garanta que pinturas como aquela que se encontra reproduzida na figura 1.3, Autumn Rhythm, que Jackson Pollock pintou em 1950, apresenta uma “densa teia de fractais.”[4] Por outras palavras, pode ser descrita por aquilo a que se chama a geometria fractal.[5] Admitamos pois que uma pintura de Pollock possa ser descrita recorrendo aos conceitos da geometria fractal — que isso não impeça porém advertir-nos fazer tanto sentido dizer que Pollock estava ciente dessa geometria ao pintar o que pintou como dizer de uma nuvem, da linha de uma costa, ou de qualquer outra realidade susceptível de ser descrita através dessa geometria, estarem cientes da geometria que as descreve — e mesmo que esta já tivesse sido desenvolvida na altura em que Autumn Rhythm foi feita. A geometria detectável nesta pintura não é nem mais nem menos fascinante do que a matemática com que é decerto possível descrever as relações atómicas das partículas de matéria colorante usada aí. No âmbito deste livro, não é essa geometria que nos interessa. A que nos interessa é aquela de que se possa dizer ter sido objecto de deliberação por parte de quem a usou e, portanto, merecer com inteira propriedade o nome de geometria de pintor.

 

 

 

 

[1]     Charpentes, p. 97. Na figura 4.14, do capítulo iv, aparece reproduzida a pintura sem estas linhas.

 

[2]     Veredicto desta relevância reclama uma validação autorizada. Pode ser encontrada no seguinte livro: Field, The Invention of Infinity, p. 62 (em geral, pp. 61-113).

 

[3]     Ver especialmente o que se escreverá entre 172 e 189. A interpretação que Bouleau faz da Flagelação será retomada em 250.

 

[4]     Ver Taylor, “Order in Pollock’s Chaos,” p. 87. Este artigo serve de introdução acessível ao assunto; para uma abordagem mais técnica, ver Jonas, Micolich, Taylor, “The Construction of Jackson Pollock’s Fractal Drip Paintings.”

 

[5]     A geometria fractal foi desenvolvida pelo matemático Benoît Mandelbrot (1924-2010), a partir da década de 60 do século passado. Entre muitas outras e idiossincráticas propriedades, caracteriza-se por, ao contrário da geometria euclideana, na qual as três dimensões do espaço são fundamentais, se basear em dimensões fraccionárias; assim, enquanto que, por exemplo, na geometria euclideana, uma linha tem dimensão 1, na geometria fractal tem uma dimensão compreendida entre 1 e 2.

 

 

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