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Manuel Botelho

Projecto artístico

 

 

I.  Projeto e projeto artístico

 

As raízes recentes da aplicação do conceito de «projeto» ao domínio da criação artística podem talvez procurar-se nas formulações que serviram de base à arte conceptual dos anos 60 e 70. Em 1965, Sol LeWitt escreveu: “Quando um artista usa uma forma de arte conceptual, isso significa que todas as decisões e planeamento são decididos de antemão e que a execução é um aspeto a negligenciar. A ideia torna-se na máquina que faz a arte”.

O princípio de que, na obra de arte, o conceito deve necessariamente anteceder a realização formal generalizou-se e passou a estar presente, de modo explícito ou implícito, em praticamente toda a atividade artística posterior. Segundo este postulado, a ideia originária, o conceito base, deverá tornar-se na máquina que constrói a obra ou, numa versão ainda mais radical, na própria obra em si, relegando a configuração física para um lugar secundário. Ora uma máquina é passível de definição, de medição, tanto na sua forma como no resultado prático do seu funcionamento. E embora o aspeto mecânico seja aqui evocado em sentido metafórico, deduz-se que dessa máquina resultará apesar de tudo arte, mas uma arte antecipável, objetiva (?), que nos liberta – pelo menos em parte! –, das perturbações incómodas da contaminação subjetiva. A arte aproxima-se então de algo mais seguro, mais próximo dos mitos dominantes do rigor científico ou da exatidão do domínio tecnológico, algo que pode resultar de um idêntico processo de gestação, de um projeto.

Plano, intento, desígnio, iniciativa, são palavras normalmente associadas ao conceito de projeto. Falamos de projeto como algo que precede uma ação e define de antemão os seus aspetos fundamentais; um enunciado das caracte-rísticas físicas, normas e/ou dos procedimentos que determinam a configura-ção futura de um produto, de um serviço ou, mais genericamente, de um resultado exclusivo.

A primeira característica comum a praticamente todos os projetos é relaciona-rem-se com objetivos concretos aos quais devem responder, fixando, à partida, um compromisso que não pode ser quebrado; a segunda prende-se com o seu caráter temporário, já que os projetos têm princípio, meio e fim, o que os distingue das operações, contínuas e/ou repetitivas; e a terceira com a utilização de uma metodologia, que define os intervenientes, o faseamento e os procedimentos adequados. 

Na história de arte encontramos situações onde tudo isto parece aplicar-se, com uma encomenda a desencadear o processo, um conjunto de regras e um período de tempo para o levar até ao fim. Independentemente de quando e como esse modelo foi posto em causa, encontramos já no século XX o predomínio de uma atitude criativa que questiona um desenvolvimento linear, estável, na criação artística. E para muitos a imprevisibilidade tornou-se, desde o primeiro momento, numa norma dominante.

Segundo Picasso, “Uma ideia é um ponto de partida e nada mais. Se meditamos sobre ela, torna-se noutra coisa”. Esta noção de variabilidade é reforçada em inúmeras outras ocasiões pelo mesmo autor, nomeadamente quando afirma: “Uma pintura não é pensada e fixada de antemão; enquanto a fazemos segue a mobilidade do pensamento”. Diria ainda: “Nunca se sabe o que vamos fazer. Começamos uma pintura e ela transforma-se em qualquer coisa de completamente diferente”. Um dos exemplos mais notáveis dessa atitude pode encontrar-se na sua Guernica – uma obra de grandes dimensões que viria a integrar o pavilhão espanhol da Exposição Internacional de Paris de 1937 –, que realizou num muito curto espaço de tempo, sem um projeto rigoroso fixado de antemão e cujo surpreendente processo de gestação conhecemos através dos registos fotográficos de Dora Maar.

Mas se essa variabilidade pode (ou não) acontecer na gestação de um trabalho específico, ela torna-se mais determinante a outra escala. E é necessário introduzir aqui o conceito de «obra total», aquela que abarca toda a produção de um artista porque aí, mesmo os autores que em determinado momento impuseram princípios muito definidos e restritivos às suas obras – Sol LeWitt e Frank Stella serão exemplos paradigmáticos –, podem revelar ao longo dos anos desenvolvimentos inesperados, pontos de inflexão e rutura que os desviam desse tipo de rigidez programática. Aliás as próprias formulações pioneiras de LeWitt acerca da arte conceptual são saudavelmente paradoxais, já que a par da apologia da frieza e racionalidade na passagem da ideia à concretização final, ele defende a intuição como origem dessa mesma ideia, remetendo-nos uma vez mais para o inconsciente enquanto motor central do processo criativo e reintegrando o fator subjetivo na obra de arte. 

Num sentido restrito, delimitado no tempo (e no espaço), o conceito de projeto que utilizamos nas mais variadas instâncias do nosso dia-a-dia poderá ser válido para o domínio artístico. Mas quando encaramos o «percurso» de uma obra ao longo de um período dilatado e compreendemos que, para sobreviver, ela tem que ser sucessivamente redefinida, repensada nas suas premissas, há que reformular o problema.

Se a arte deve ser um processo aberto onde a componente experimental tem papel decisivo, se deve viver da surpresa, de imprevistas conexões com a vida ou consigo própria, «projeto» passa a ser um conceito com um significado mais amplo, necessariamente relativo, flexível, evolutivo. Pode mesmo incluir aspetos contraditórios, inaceitáveis noutras áreas do conhecimento. O «projeto» artístico de longo prazo será definidor do «percurso» da obra em construção, mas apenas de forma global, através de um conjunto de princípios estruturantes, constantemente revistos e atualizados. E dificilmente poderá submeter-se, sem com isso pôr em causa a sua essência, ao rigor inflexível de projetos noutros domínios em termos de objetivos, prazo e metodologia.

Dito de outro modo e em poucas palavras:

Hoje, o objetivo, a origem da obra, radica-se quase sempre na iniciativa do próprio artista. Com a autonomização da arte passou a esperar-se que o autor não respondesse apenas a solicitações concretas provenientes do exterior mas que soubesse formular uma autoenco-menda, subjetivizando desde logo esse momento inicial.

O caráter temporário (ou não) do projeto artístico pode ser encarado sob duas perspetivas distintas. No caso de projetos muito particulares, delimitados no tempo, a área artística poderá não se distinguir radicalmente de outras, mas quando está em causa a totalidade de uma obra e o projeto se torna global, estendendo-se no tempo para abarcar toda a vida produtiva do artista, o projeto deixa de ser algo que antecede a obra para acontecer em simultanei-dade com ela – o projeto torna-se na obra e vice-versa.

Por último, as áreas científicas e tecnológicas obedecem a exigências de rigor metodológico que não se aplicam ao domínio da arte. Na arte tanto são aceites os procedimentos estabilizados e testados como as infrações que os põem em causa. A flexibilidade e a compatibilização de metodologias diversas – senão mesmo antagónicas –, são características muito particulares do domínio artístico contemporâneo.

 

 

II. Princípios geradores do projeto

 

Neste contexto, de uma arte permanentemente aberta à mudança e ao impre-visto, o projeto artístico em geral e, mais ainda, a sua versão de longo curso, tornam-se difíceis senão impossíveis de definir e circunscrever através de sistemas comumente aceites, importados acriticamente de outras áreas. Estando fora de questão um tipo de formulação capaz de determinar com rigor resultados específicos, integralmente previsíveis, o projeto artístico poderá, no entanto, ser caracterizado com segurança através de um conjunto abrangente linhas de força ou, dito de modo mais operativo, de princípios geradores. É aqui que poderão descobrir-se os fios condutores que determinam o que acontece em cada momento. É esta a origem de tudo o que o artista produz, a razão de ser das suas escolhas.

Aspetos base tão diversos como motivação pessoal; opções técnicas, temáticas, formais, conceptuais; contextualização a nível pessoal, sociopolítico, cultural… serão alguns dos fatores decisivos para a configuração desse quadro de referência. Fixados ao longo da vida e variando em função de cada autor, são princípios estruturantes como estes que determinam a lógica interna de um percurso, a coesão e/ou diversidade das opções sucessivas que balizam a obra autoral de longo curso. E não só; em última instância, é a consciência destes princípios que permite separar águas, assinalando a fronteira, por vezes incerta, que separa as obras plásticas consistentes da mera produção artesanal ou amadorística.

 

(1.6.2015)

 

 

 

 

 

 

 

 

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