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Margarida Prieto

Da Pintura: Pensar, Fazer e Ensinar

 

Introdução

        

Tentar responder à questão “quais são as bases conceptuais da Investigação em Pintura?” implica pensar a Pintura, fazê-la e ensiná-la. Justamente, e na medida em que esta investigação é feita dentro do contexto académico, é fundamental que se pense a pintura  do ponto de vista de quem a faz e de quem a observa e, também, do ponto de vista de quem está responsabilizado por transmitir as técnicas do seu fazer.

        

 

1.Fazer a Pintura

 

O gesto (numa distinção com o fazer) res gerere implica alcançar alguma coisa, retê-la sobre si, assumir a inteira responsabilidade [1].

 

Fazer Pintura significa pintar.

Quem faz Pintura é pintor. E ser pintor é tomar, dentro do amplo campo da criação artística, uma especialidade do fazer criativo e artístico. O pintor domina técnicas próprias à pintura, demonstra competências e assume a imagem pictórica como horizonte do seu trabalho, gerando-a (de cada vez). 

 

Fazer Pintura é simultaneamente agir e pensar.

Precisamente, toda a tekchné releva deste processo: a inteligência de fazer adequar os meios (técnicos e criativos) aos fins contemplados no horizonte de expectativa do pintor.

Por isso, fazer a Pintura implica e aplica o pensar a Pintura mas de um modo diverso porque intrínseco: o pintor é um artista informado e a sua produção (a obra criada) é gerada dentro do que são as suas capacidades técnicas e intelectuais, dos seus conhecimentos, e contém de modo patente e/ou latente, inevitavelmente, as suas referências e preferências (por exemplo: outras pinturas, outras imagens, outros imaginários, outros tempos, outros autores, outros artistas, outras técnicas, outros modus operandi). É deste modo que se pode afirmar que a obra pictórica se situa num contínuo, porque cita outras obras, outros meios ou, num contraponto que se faz como resistência, reage ao que foi feito e, nesse movimento,  paradoxalmente, remete para o que recusa. Assim, fazer a Pintura é investir/ investigar num determinado meio criativo e artístico, abrindo caminho à re-criação da obra numa teia de referências distintiva de   autoria/artista/pintor.

Os artista pensam (também) por imagens. O seu trabalho pode ser despoletado ou por um tema ou por um conceito, ou por ambos. Os temas tendem a tornar as imagens pictóricas ilustrativas, ou seja, alicerçam-se na literatura. Os conceitos tendem à sua encriptação, quer do ponto de vista formal, quer na sua análise.

Para que um pintor proceda a uma investigação académica em Pintura é imprescindível priorizar a sua produção pictórica que, por si, expressa um pensar a Pintura próprio a quem a faz. Por outro lado, explicitar intensões, procedimentos, enquadramentos imagéticos, referências, e todo um leque de informações sobre o fazer a Pintura pode documentar utilmente a investigação e dar pistas importantes àqueles que, a posteriori, debruçam o seu olhar sobre ela.(Não que as intenções e os a priori sejam expressam de modo patente na obra feita, pelo contrário).

Porque a investigação em Pintura é todo um trabalho de atelier que se alia ao registo de um modus operandi, é no modo de fazer de cada um que se torna patente como o pensar se enleia no fazer.

A título de exemplo, tomo a liberdade de falar na primeira pessoa para, assim, dar o testemunho, aqui, do meu processo de trabalho no atelier.

Cada projecto tem um lugar em vista para se expor, mesmo quando, no limite, esse lugar se torna um white cube virtual. O espaço expositivo, nas suas características arquitectónicas, implica de imediato a decisão sobre as dimensões das obras (altura, largura e espessura do suporte), os seus formatos (quadrado, rectangular, tondo, shaped-canvas), os possíveis desdobramentos (em polípticos ou isoladamente), o modo de organização das peças entre si e no conjunto, a altura a que se mostram, as distâncias entre. Quanto ao tema e/ou ao conceito que suporta o imaginário das representações, depende dos meus interesses: são fascínios por outras pinturas (representações, técnicas, arquétipos, épocas, movimentos históricos, entre tantas outras coisas que me interessam de um modo pontual numa pintura), exercícios de cor, equilíbrios cromáticos nas composições, testes a determinadas relações como, por exemplo, entre o textual e o figural, entre a linguagem e a imagem na pintura ilustrativa, que persigo com constância  e sem saber porquê.

Faço cada pintura como se fosse a única, e com todo cuidado. Escolho os suportes (madeira, tela ou papel), os pigmentos e os seus media (acrílico ou óleo) dependendo do que vou representar. O meu critério é simples: prefiro o óleo para modelação e espessura de tinta, com ou sem texturas de pincelada; seleciono o acrílico para superfícies de cor plana m projectos de execução rápida. Utilizo madeira ou tela como suporte dependendo do partido que vou tirar de cada uma destas matérias. Estes critérios de selecção dos media são consequência da experiência adquirida e, sobretudo, dos resultados falhados porque quando o meio não é o indicado e boicota as minhas expectativas, a lição tende a ser mais eficaz, no sentido em que a memorizo e interiorizo de modo a evitá-la.

A meu ver, os media são fundamentais para o que quero representar; estão intimamente ligados à plasticidade da pintura e às suas qualidades visuais: interferem na modelação e planura das figuras, na transparência e opacidade dos pigmentos, na pastosidade e diluição da tinta, na lisura ou textura das superfícies, na pureza ou mistura das cores, no brilho ou fosco do verniz; e estão ao serviço da ideia.

O que elejo para representar em cada pintura depende do projecto pictórico. Por exemplo: uma das estruturas que me é querida é o tema e variações intimamente associada à composição musical. Esta estrutura permite organizar séries e ciclos de pinturas, ancoradas a um tema. A possibilidade de fazer variações abre o campo do interminável.  Posso organizar as séries e os ciclos em polípticos dispostos de modo linear, dispersos ou organizados em grelha numa reticula de espaçamentos idênticos, ou seja, a sua disposição permite-me seguir os distintos modelos propostos pela museologia desde o cabinet d’amateur ao painel retabular. Também estes modos de apresentação das séries  e ciclos permitem que, de cada vez, esteja em potência uma variação expositiva que contribui para outros modos de pensar esta Pintura (Figuras 1, 2 e 3).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 1. Ema M, 2009, As cores do alfabeto, 26 pinturas, óleo s/ tela, dimensões variáveis. Este políptico pode ser instalado de acordo com geometrias distintas e múltiplas, mantendo sempre uma relação de oposição entre a regra alfabética (a sequência das letras alfabéticas) e a grelha de cores (numa lógica de passagem que segue a do arco-íris). Neste caso, as pinturas apresentam-se dispostas circularmente, numa organização onde é dada prioridade à cor. Deste modo, as letras perdem a sua convencional sequência alfabética para nos mostrar que são todas igualmente importantes. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 2. Ema M, 2009, As cores do alfabeto, 26 pinturas, óleo s/ tela, dimensões variáveis. Neste caso, foi aplicada a regra dos Cabinet d'Amateur que releva de uma ocupação dispersa da parede.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 3. Ema M, W-H-I-T-E, instalação de 5 pinturas da série As cores do Alfabeto, exposição O Ornitorrinco Branco, Casa Jaime Umbelino / Fábrica das Histórias, Torres Vedras, 2014. Neste caso, foram seleccionadas 5 pinturas das 26 que compõem o alfabeto, justamente aquelas que escrevem a palavra white. Esta opção deve-se ao carácter pedagógico a que o lugar é dedicado. A ilustração nos seus vários modelos, é tomada como ponto de ancoragem de todas as exposições da Fábrica das Histórias. Em W-H-I-T-E assume-se cada letra como uma capital, remetendo para as práticas das escrita medieval onde, frequentemente, se toma a primeira maiúscula dos textos como pretexto criativo e decorativo que, por vezes leva à ilegibilidade da letra a favor do seu desenho.

 

 

A composição interna da representação, bem como os conteúdos imagéticos acontecem por duas vias. Às vezes é um texto que me sugere uma imagem para pintar – imagem que pode estar impregnada de outras que lhe antecederam, numa lógica intertextual, remetendo para o passado, para a história da arte. Outras vezes é durante o processo que faz surgiras ideias. Em potência, são afins ou totalmente diferentes, porque seguem a sequência ou a quebram para originar outra. É durante este último processo que as ideias são mais objectivas, e as imagens aparecem no meu imaginário como se estivessem já concretizadas – só preciso da energia para as tornar pintura. Ou, ainda, em vez de uma imagem, é um resultado plástico que me fascina: uma relação cromática inesperada, uma velatura que afecta as cores de modo eficaz, iluminando ou escurecendo a composição, uma reação química imprevista num branco que se deixa atravessar e tingir por outras cores, ou que se abre em fissuras. Tantos são os acidentes, os acasos e os imprevistos que tomo para integrarem o meu leque de recursos plásticos.

Quando estava a aprender a tocar piano, a minha professora insistia na repetição exaustiva de cada peça. Falava em educar a “memória dos dedos” o que, durante o concerto, permitia ao interprete uma performance sem enganos. A “memória dos dedos” é uma expressão que tem, igualmente, uma aplicação na práticas artística da pintura pois, como é tendencialmente repetitiva nos seus processos, demonstra a eficácia destes procedimentos e modos de fazer. Saber como determinada reação química origina um resultado plástico específico permite a sua repetição numa outra pintura, numa outra aplicação pertinente. Um procedimento memorizado torna-se potência. Assim, na minha experiência, fazer pintura é pensá-la enquanto trabalho em processo. Isto requer saber o que se vai pintar – o que é questionado pela imagem pictórica ou, melhor, o que é questionado por aquela imagem pictórica –; requer fazer e assumir escolhas, técnicas, métodos, processos, invenções, utensílios, meios, suportes que se adequam ao resultado em expectativa. Antes de começar a pintar não é claro o que vou fazer, no sentido em que raramente a ideia inicial é uma imagem límpida que se afere com o resultado final. Se a composição primeira da pintura se revela incipiente durante o processo posso acrescentar, retirar e substituir elementos; se a composição inicial é tomada como definitiva, o meu trabalho é (apenas) colorir. Ambos os processos são exigentes, e um não descarta o outro. O primeiro releva do método da colagem; o segundo do preenchimento.

Fazer pintura é pensar sobre o que se pinta (representação) e como se pinta (media).

 

 

2.Pensar a Pintura

 

Pensar a Pintura pode ser a denominação genérica dos campos que agrupam as actividades de ordem analítica, crítica, ensaísta, historicista, filosófica, museológica (para enumerar algumas) sistematizadas em torno da arte e do objecto artístico.

A Pintura enquanto factum est, é fundamental para gerar este pensar a Pintura. Dentro do conjunto de disciplinas que se orienta ao redor da obra feita pode afirmar-se que pensar a Pintura é pensar sobre a Pintura enquanto obra feita. Sobre porque é na obra já executada que se funda(m) o(s) discurso(s); ou a partir dela no sentido de ser imprescindível a sua presença perante o olhar do observador – uma presença que é como um apelo (silencioso), aquele a partir do qual o discurso (do observador) se gera como reflexo e como revelação da natureza silenciosa da pintura. Mas a pintura tem um discurso próprio: Lacoue-Labarthe faz a distinção entre os discursos sobre a pintura e o discurso silencioso e ontológico da Pintura.

Pode-se pensar que o discurso próprio da Pintura é aquele que revem das representações miméticas, ou seja, das histórias a que se refere cada obra. Neste caso, a Pintura tem uma função ilustrativa e, eclipsando o seu silêncio essencial, fica ao serviço da literatura porque se o texto conta histórias, a imagem pictórica vem mostrá-las numa encenação destinada ao olhar e ao reconhecimento das figuras, das cenas e das narrativas que a originaram e que nela estão patentes. Mas a composição pictórica pode incluir a representação de um texto que é, para o observador, como uma voz que se escuta no preciso momento da leitura. Trata-se de uma voz – a do autor da história – que impregna de escrita a pintura, misturando o discurso das palavras com o das imagens. Assim, se a pintura ilustra é porque mostra o está escrito, tanto de um modo literal como, e simultaneamente, de um modo figural ao dar uma forma pictórica às figuras que são descritas nos textos– figuras como imagens mentais nascidas da leitura, tão melhor imaginadas quanto mais interessante é o grau de descritibilidade do narrador. Estas  figuras que se imaginam tornam-se representações plásticas e fazem-se equivaler àquelas do texto de onde derivam. Neste caso, o discurso sobre a pintura está assente nos seus elementos figurais, aqueles que o observador reconhece por afinidade com o real numa lógica de mimese. O discurso do observador estrutura-se na descritibilidade da imagem e expõe, por palavras, o que está patente na representação, faz-se como se fosse um  comentário ao texto de origem.

Pode-se pensar, também, que o discurso sobre a pintura se emudece quando representação pictórica é da ordem da abstração, ou seja, quando a imagem pintada resiste ao reconhecimento imediato e, por isso, o observador é incapaz de identificar se há algum texto de referência para o que está representado. Mas, mesmo neste caso, jamais se estabelece silêncio e por duas razões: a primeira de ordem racional; a segunda de ordem emocional.

A primeira razão prende-se ao exercício próprio da abstração. No contexto da pintura abstracta e, consequentemente, no irreconhecível das formas representadas, continuam a ser reconhecíveis pelos elementos irredutíveis à pintura. Mantém-se a possibilidade de nomear a cor, a espessura de tinta, a textura, a pincelada, o rasto, o gesto, a marca. Permanece a identificação dos elementos plásticos da pintura e, eventualmente, através de exercícios de livre associação, é possível dar nome a formas dispersas na composição praticando uma fórmula que Leonardo Da Vinci recomenda para estimular a imaginação e que é semelhante àquele jogo infantil onde as nuvens, nos seus movimentos fluídos, se organizam e diluem para se parecerem com animais, objectos, e outras tantas figuras que se dissolvem no vento.  Então, este discurso sobre a pintura é pensado por via da análise dos seus elementos plásticos e por livre associação.

A segunda razão está no poder da Pintura para fazer nascer a emoção de um estranhamento próprio do trabalho da arte, onde se reconhece a passagem de uma outra estranheza, uma surpresa, que é nomeada como íntima e individual. Trata-se da experiência, perante a Pintura, que efectiva um percurso: aquele onde o observador sai de si próprio e é enviado para o longínquo. Esta experiência advém da atenção, no estar atento à Pintura; é uma estranheza que move, comove e transforma – é uma força transportada, que passa através dos signos (mudos) da Pintura. Neste caso, o discurso do observador sobre a Pintura é esmagado, travado pelo soluço da emoção (efeito da dopamina). Então, o discurso da Pintura abre ao deslumbre e reflecte o seu mutismo elementar no observador, como um eco surdo. Neste caso, ainda, pensar a pintura é fazer silêncio – um silêncio que é mais expressivo que qualquer discurso.

 

 

3 Ensinar a Pintura

 

Ensinar a Pintura é impossível.

Demonstra-se e pratica-se por repetição, as técnicas e procedimentos que levam a determinados resultados plásticos. Exemplifica-se, com obras da história da pintura que exibem os resultados de um procedimento técnico contextualizado no tempo e no espaço históricos.

Ensinar a Pintura é entusiasmar o outro em direcção à Pintura, sem ensinar de facto.

No ensino da Pintura, a única metodologia possível é de carácter heurístico (do grego «heuriskein» que significa «encontrar» pela descoberta), porque faz da experiência de pintar no atelier – o laboratório da pintura – a sua legitimação. É pela experimentação, no acto próprio do fazer pintura, que se dá uma aproximação progressiva à Pintura. Assim, a inevitável e imprescindível exploração em atelier é tomada como prática laboratorial. Aqui, onde o gesto de pintar se formaliza (dá forma e enforma) em pintura, num aparecer assertivo e firme que passa por estádios intermédios e que tem como fito, como horizonte de expectativa, a obra pictórica enquanto resultado de um pensar a fazer ou de um fazer a pensar pintura.

 

 

Conclusão

 

Para tentar responder à questão “quais são as bases conceptuais da Investigação em Pintura?” tomo a minha experiência enquanto aluna, artista e professora para tentar responder. A experiência própria, permite uma abordagem onde é forçoso multiplicar-me e isolar-me para cada uma das acções: pensar, fazer e ensinar. O auto-didatismo – que é a consequência directa dos métodos experimentais em artes na actualidade – reflecte o artista como professor de si, numa experiência que alia o fazer e o pensar a pintura enquanto processo heurístico de trabalho no atelier. É um outro método que se substituiu ao das oficinas e dos mestres de outros tempo  onde se aprendia a ver o fazer, num regime onde a cópia e a repetição se sobrepunham ao da originalidade autoral, onde a tradição da passagem do conhecimento era da ordem da oralidade e da observação.

 

(2.6.2015)

 

 

 

 

 

 

 

 

[1]AGAMBEN, Giorgio, «Notas sobre o gesto», in Interactividades: Artes, Tecnologias, Saberes, Lisboa, co-edição CECL – FCSH/UNL e Dep. Cultura da CML, 1997, p. 20.

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