Mário Bismarck
O Desenho no espaço do “não-saber”
“16 December 1989. Language can express only what language enables it to express.
Language is only the language of consciousness. “What one cannot say, one does not know”.
That is why all theory is absolutely circumscribed, almost unusable, but always dangerous”
Gerhard Richter, The daily practice of painting. Writings 1962-1993, pág. 182.
Antes de entrar nas questões enunciadas anteriormente na sinopse, é para mim necessário debruçar-me um pouco sobre o título deste projecto de investigação.
Apesar de todos sabermos que o grande título aglutinador deste projecto (“bases conceptuais da investigação em pintura”) não se pretender restrito e fechado na justeza do seu nome, a sua escolha enuncia (indicia?) um predo-mínio de alguma coisa (conceitos) como base (sustentação, princípio, pressu-posto) de uma outra (investigação em pintura). Podemos entender que o que se pretende com este título é explorar os pressupostos conceptuais (as bases matriciais) que determinam a investigação em pintura.
Temos duas questões aqui, uma relacionada com ideia da existência de uma “base”, outra relacionada com a dificuldade de identificar o que é a “investigação em pintura”. A primeira é saber da validade desta estrutura ascendente e sequêncial desde as bases conceptuais (como apriori e pressuposto) até à “investigação em pintura”, i.e., se há um sentido hierárquico e determinista dos conceitos sobre a pintura (no fundo, saber se a pintura não é mais do que uma consequência de uma formatação conceptual; a segunda tem a ver com o uso da preposição “em” que estabelece uma relação de lugar entre duas coisas. Não se trata da investigação sobre a pintura, mas da investigação em pintura, e estas duas preposições determinam relações (de lugar) diversas: “em” refere-se a “dentro de”, e “sobre” refere-se a “acerca de” (ou mesmo “por cima de”); uma determina uma relação implícita, interna, com a pintura, a outra um posicionamento de distância. O termo “investigar em pintura” implica a ideia de investigar com a pintura, dentro do território da pintura (o que pode pressupor que investigar e pintar será (poderá ser) coincidente e indistinto); por outro lado, investigar sobre a pintura pressupõem a ideia de distância e de afastamento da prática pictórica, da escolha da colocação de um olhar que se afasta do fazer e se aproxima da noção de comtemplação. Mas o acto de pintar está marcado, literalmente, por este vai-e-vem do pintor/autor entre estar dentro da pintura e se afastar dela (uma pequena história é descrita por Júlio Pomar quando refere que, tendo encostado à parede um quadro que não conseguia resolver, passado uns meses, quando de novo olhou para ele, o quadro estava finalizado).
O problema da primeira poderá ser a construção de uma fundamentação conceptual à priori sobre a prática da pintura: por assim dizer, a sobreva-lorização da teoria, das bases conceptuais sobre a prática pictórica, tornando a pintura como a resolução de um enunciado pré-estabelecido e definido.
O problema da segunda será o risco da fundamentação de que pintar é investigar em pintura, i.e. que a prática pictórica constroi um processo normativo de investigação e que a prática artística se uniformiza, rege e esgota dentro do campo racional e “científico” da investigação.
Gomez Molina, para descrever a acção do artista e distingui-la do investigador, usava a palavra estratégia, a que associava os termos de astúcia e de oportunidade, para contrapor à palavra método, esta associada aos conceitos de razão e de conhecimento.
Assim posso dizer que não estou interessado nas “bases conceptuais” (no sentido em que estas determinam alguma coisa) mas estarei interessado na investigação em pintura, no sentido em que Alberti já referia no primeiro parágrafo do Livro 1 do “Della pittura”: “falo destas coisas (...) como pintor”, ou como Paul Valery referia, quando enunciou a “Poietica” como o estudo científico e filosófico das condutas criadoras das obras. “Falar como um pintor” implica o uso não do “conhecimento” mas dos conhecimentos implicados: de diferentes tipos de conhecimento, do que se sabe e do que não se sabe, do expectável e do imprevisto, da “astúcia” e do método. Crença e verdade não são a mesma coisa.
Mas falar implica necessariamente o uso da linguagem...
Na sinopse anteriormente apresentada, colocava dois tipos de questões que se pretende que se relacionem, mas cuja relação é sequencial: a segunda parte da validação dos pressupostas da primeira.
Comecemos então pela primeira:
“a) contrariando a tendência acima descrita, há toda uma corrente de opiniões que a contesta (maioritariamente oriunda dos próprios artistas), de que o recente livro ”On not knowing. How artists think” (Elizabeth Fisher e Rebecca Fortnum, Black Dog Publishing, 2013), é um exemplo e que pode justificar a vontade de “teorizar” contra a excessiva validação da teoria (de que a questão da linguagem e da palavra como elemento hegemónico é relevante).”
Estão aqui implicadas várias questões:
em relação à criação/investigação:
É o “pensamento” criativo idêntico ao pensamento investigativo? Regem-se pelos mesmos padrões? Buscam o mesmo? Pensa-se da mesma maneira?
Em relação à linguagem verbal como veículo exclusivo de transmissão do conhecimento:
Acreditam ou desconfiam os artistas na competência da palavra?
Acede a linguagem à “experiência interior”? (Bataille, 1992: “subsiste em nós uma parte muda, furtada, inapreensível. Na região das palavras, do discurso, esta parte é ignorada. Por isso ela geralmente nos escapa”)
O que esclarece a linguagem? O que pode a linguagem esclarecer? Quais os seus limites? Qual o seu poder de crença? O que pretende a linguagem? Explicar?
O e-mail do Pedro Calapez (27 novembro) acerca das razões porque se afasta deste projecto de investigação coloca toda uma série de questões que para mim são claramente pertinentes e que me levam a tentar aprofundar este assunto. Porque desconfiam (alguns) criadores da hegemonia da teoria?
Um outro exemplo: este (anti)texto de catálogo do pintor João Jacinto:
"Espera-se do pintor uma explicação? Algumas palavras que ajudem a entender? Mas entender o quê? Ou tudo o que se pede é apenas uma decorativa moldura de palavras? Na sua “irónica” teoria da arte, Ad Reinhardt caricaturava a necessidade demonstrada pelo cidadão comum, de saber o que uma pintura abstracta significava. Anos mais tarde Philip Guston, na altura já pintor ex-abstracto, insurgia-se contra a pergunta What’s that?, que o critico Tom Hess lhe dirigiu frente a uma das suas novas pinturas figurativas. Respondeu-lhe Guston: For Christ’s sake Tom, if this were eleven feet of one color, with one band running down on the end, you wouldn’t ask me what it was. Recentemente o pintor inglês Frank Auerbach declinou o convite que lhe tinha sido dirigido para participar num programa televisivo intitulado Desmistificar a Pintura, argumentando que a pintura era um ofício misterioso e que nada havia a desmistificar. Acrescentava repudiar a concepção do pintor como um sujeito abordável, que por acaso pintava.
Ser pintor é ser outrem (homeless, como Greenberg dizia dos que não lhe seguiam a palavra). É ser-se a mão estrangeira lentamente a emigrar para a que pinta. E a razão porque se faz, ou antes, a obsessão de pintar, é (roubando as palavras a uma aula de Levinas intitulada A Subjectividade como An-Arquia) um desequilíbrio, um delírio que surpreende a origem, que se levanta mais cedo do que a origem.
Desde amanhã."
João Jacinto, 29 de Maio de 2012
No seu livro “Sketches of thought”, Vinod Goel cita a seguinte frase de Arthur Koestner: “A linguagem pode-se tornar um ecran que se coloca entre o pensador e a realidade. Esta é a razão pela qual a verdadeira criatividade começa onde a linguagem acaba”.
A segunda questão que eu formulava na sinopse é a seguinte:
b) Como se coloca o “Desenho” neste problema, a partir do momento em que o afastemos do campo da “arte”, i.e., que o consideremos não como fim mas como “interface”.
Evidentemente temos que considerar aqui o desenho entendido em sentido amplo e de todo não restrito à ideia de “obra sobre papel”, mas antes como campo inicial, especulativo e experimental, onde os testes e as possibilidades se expandem no espaço do atelier.
Não estamos a falar de uma relação directa do desenho com a obra a ser produzida (como dizia o Tiziano “fazer a cama à pintura”), não do chamado desenho preparatório, mas do desenho como articulação de elementos mínimos significantes que visualizam de uma maneira sintética e vaga possibilidades dispares de criar sentidos, de reorganizar e reinventar os elementos formais e conceptuais no “campo da batalha”.
O desenho é o meio mais eficaz de visualizar o que não existe e de dar forma às “imagens mentais” mas, como já o disse Francisco de Holanda, “para que seja e venha a ter ser”. i.e., não só que seja mas também para construir os seus sentidos.
Interessame pois equacionar este espaço especulativo do desenho como contraponto à formatação apriori da teoria, ou seja, como pode o desenho (a sua actividade aberta e especulativa) contrariar e corromper os pressupostos. Como pode o desenho actuar e estimular no espaço do “não-saber”.
Como nos dizia Picasso: “se queres saber como vai ser o desenho, tens que começar por o fazer”.
(4.8.2015)