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Rui Serra

Voltar ao Centro – a experiência do atelier no processo criativo

 

 

 

Prólogo

 

Todos os dias, quando chego ao meu atelier, entro numa realidade alternativa, ou seja, entro num espaço que estabeleci ser uma verdadeira ficção, ao qual denominei Super Paisagem Primordial ou, muito simplesmente, 2070.

 

 

I

 

No espaço do atelier vivo, na condição de autor, uma cosmovisão em tudo semelhante ao universo da Alquimia, tentando através do trabalho especulativo material aceder a uma dimensão no plano espiritual. Assim, o atelier é um local fechado e afastado da realidade, onde vivo um registo de clausura, de experimentação plena, tal como enunciado na seguinte descrição de um labora-tório alquímico:

 

(…) local que, embora não sendo sempre luminoso, tem obrigatoria-mente de ser calmo e arejado, e provido dos objectos e instrumentos estritamente necessários para as operações. A desarrumação e a confusão são inconcebíveis, dado que a vertente material não pode de modo algum perturbar a espiritual. (…) Assim, o laboratório apresenta-se como o local onde o alquimista realiza fisicamente, e no modo operatório, as suas investigações.[1].

 

No interior deste espaço de trabalho, alimentado por luz artificial (por vezes muito fraca), penso a pintura como uma recriação de um ambiente nocturno, uma espécie de variante do mito de Plínio, fundador da noção ocidental de Pintura. Este episódio, incluído na obra História Natural, consiste no relato de uma noiva que fixa a imagem do seu noivo, que se irá ausentar, mediante o desenho do contorno da sua sombra projectada sobre um muro, criando uma substituição, ou melhor, criando uma cópia do original. A verdade é que todo o meu processo de execução de pinturas passa pela mediação de um objecto - um retroprojector -, através do qual se ampliam e emitem imagens para os suportes de tela a pintar. O interessante é que, tal como em Plínio, é a sombra, resultado do obstáculo por onde a luz não passa, que define a imagem na superfície da tela, obrigando-me a executar a pintura através da união dos pontos e linhas que definem a fronteira entre a luz e a não luz. Quando a mesma luz se apaga, o que resta é o quadro, isto é, a materialização da sombra. A questão da retroprojecção, neste contexto, recorda também o dispositivo óptico da câmara escura. Assim, apesar da pintura ser um acto manual, quase copista, não deixa a montante de ser um autêntico pensamento de ‘revelação’, como num acto fotográfico.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 1   Interior do atelier com retroprojector (alçado Este).

 

Esta dualidade atelier/retroprojector define ainda outra hipótese metafórica: que o meu processo de trabalho condensa, ele próprio, o mito platónico do conhecimento. Platão, com a sua ‘alegoria da caverna’, incluída no capítulo VII do diálogo A República, imagina o homem primitivo prisioneiro numa caverna, sem poder vislumbrar outra coisa que não seja a parede do fundo dessa mesma prisão, na qual se projectam sombras de uma realidade exterior, e de cuja existência não suspeita. Só virando-se para o mundo iluminado pelo sol conseguirá o prisioneiro alcançar o verdadeiro conhecimento.

Coloco aqui este problema porque o mecanismo óptico do retroprojector é constituído por um elemento deveras significativo: o espelho. Aliás, este aparelho possui um espelho interno (côncavo) que difunde a fonte lumínica, e um externo (liso) que direcciona a luz. Esta característica técnica faz toda a diferença se se pensar que, enquanto em Plínio o efeito mimético era possível porque havia duas entidades - o autor (o eu) e o modelo (o outro) - e a imagem surgia como réplica da silhueta do segundo, no caso de Platão o ‘instrumento’ da mimesis é muito mais indirecto, porque corresponde ao espelho que se interpõe e projecta supostos corpos exteriores e ausentes. No caso do retroprojector no atelier, o verificado, em termos conceptuais, assemelha-se ao descrito no mito platónico: o visível, o que capturo com a pintura, é a sombra dada indirectamente pelos espelhos do mecanismo de retroprojecção. Desse modo, a matriz, isto é, o acetato com a imagem a projectar, constitui-se como verdade no plano das ideias.

 

 

II

 

É comum pensar-se que o processo de pintura em atelier tem algo de misterioso e que o autor, por não falar sobre o mesmo, está a esconder um segredo que não deseja ser revelado. A revelação desse segredo - os meca-nismos de recolha, apropriação e concretização, a parte oculta da actividade artística caracterizada pelos trajectos erráticos, pelas escolhas, pelas indecisões, pelos enganos e trabalho perdido - pouco ou nada tem a ver com a dimensão de mistério identificada na criação pura.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 2   Interior do atelier (alçado Sul).

 

 

Não deixa, porém, de ser significativa a ‘aura’ misteriosa que muitas vezes é associada à práxis artística no lugar recolhido que é o atelier, semelhante à dimensão secreta da investigação alquímica. Aliás, o universo alquímico parece ser em tudo semelhante ao universo pictórico, uma vez que ambas as actividades consistem na criação de um resultado (ou resultados) cuja fórmula não consegue ser nem descrita, nem verbalizada. Outro ponto de contacto, reside na constante luta vivida (desesperante por vezes) pelo pintor e pelo alquimista, tanto no atelier como no laboratório, aquando da utilização dos materiais que, numa fase inicial, são líquidos, para numa fase final se tornarem sólidos. Assim, tal como com o alquimista, o meu estado mental enquanto pintor no interior do espaço de trabalho está dividido: por um lado pretendo atingir certas soluções pensadas a priori e, por outro, quero arriscar e ser imprevisível, esperando que no meio do processo surjam iluminações, pequenos milagres, resultados que me escapam e que me vão conferir uma sensação de superação espiritual. As várias etapas necessárias para que tal aconteça, equivalentes às fases estabelecidas pelos alquimistas, apresentam-se do seguinte modo:

- Em primeiro lugar ocorre uma sensação, um sentido vago, uma necessidade do que poderá vir a acontecer, que equivale à determinação do referente inicial.

- Seguidamente verifica-se a fase das perguntas, caracterizada pela procura de imagens cujo sentido remeta para o referente inicial, só que inevitavelmente, as imagens encontradas são deslocações, afastamentos progressivos do referente, aumentando, desde logo, as possibilidades visuais e de sentido da primeira ideia. Estas múltiplas imagens são oriundas de uma série de dossiers elaborados por mim em paralelo, contendo material visual seleccionado para futuros trabalhos (dividida em duas categorias, uma denominada dossiers Caos e outra Testamento 2070).

- A partir deste momento surge a intuição pura, e as imagens, que já são em número suficiente, necessitam de materialização.

- Passa-se então à fase da execução. O material vai sendo trabalhado, desmontado, moldado, através de descobertas empíricas, de marcas incons-tantes, aleatórias, diferenciadas, de gestos, cores, texturas, brilhos, intensida-des, viscosidades, etc., muitas delas surgidas por acasos circunstanciais (uma vez mais a dedução alquímica), entrando também em jogo alguma (mínima) memória das misturas, uma certa atenção ao comportamento dos materiais, e a constante noção de risco e transgressão.

- O sentido auto-crítico tem de estar muito presente, porque perante todas estas tarefas continuadas e rotineiras (algumas delas inconscientes) o ‘eu autoral’ tem de saber pressentir o momento ‘mágico’ onde a pintura deixa de ser uma mera aglomeração ou acumulação de níveis e passagens de tinta, para passar a ser um organon, uma entidade com autonomia própria.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 3   Interior do atelier (alçado Norte).

 

 

- Neste momento conclusivo do percurso é praticamente impossível afirmar como o resultado aconteceu. Tal como nas experiências alquímicas, o produto parece ser fruto de geração espontânea, como se fosse uma realidade total-mente exterior ao autor. Entre o caos inicial, onde reside a prima materia, e a perfeição final, onde se encontra a opus, vai todo um longo caminho, tortuoso, uma verdadeira sucessão de iluminações, de estágios de ‘transmutação’, cuja finalidade é o ‘saber pintar’.

 

Esta minha forma de ver, pensar e sentir a criatividade, não por acaso, assemelha-se ao processo experienciado pelos pintores de ícones. Segundo os Podlinnik (manuais de instruções para pintar ícones), os autores destas imagens acedem ao mistério sagrado através de ‘iluminações’ sucessivas do invisível:

 

No início é uma visão mental, tenebrosa. De seguida acontece um período em que a imaginação produz formas sem correspondência com a realidade (a realidade espiritual percebida na mente não encontra nenhuma correspondência nas formas terrenas, ou seja, o pintor de ícones vive o denominado ‘período das trevas’). Depois acontece um momento de hesitação, de dúvida perante o imaginado, no qual os verdadeiros pintores aguardam, correspondendo esta fase à meditatio (os falsos pintores, por sua vez, começam a criar formas irreais). Após este período de sofrimento, também ele purificador, dá-se a descida do espírito sobre o criador e surge a ‘iluminação’, isto é, o autor ‘vê’ a forma que se tornará visível. Por último, o pintor de ícones executa-a segundo preceitos de moderação e castidade.[2].

 

São descritos, portanto, os estágios dolorosos que precedem os instantes felizes da iluminação final.

 

 

III

 

Em 2011 construí um dispositivo espacial, concebido para acolher uma série pictórica, que replica, no plano ideal, a experiência vivida por mim quotidianamente no atelier. Este dispositivo, intitulado Foi a Luz, consiste na metaforização do meu local de trabalho, no qual eu/autor/espectador, após uma fase inicial ritualística, entro num espaço interior onde decorre o milagre da criação. E reside aqui o possível sentido principal do meu atelier: ele é metáfora de uma maternidade, do local onde ocorre o mistério da natividade e, nessa condição, o eu/artista surge também na condição de elemento coadjuvante, de verdadeiro obstetra, que acompanha toda a gestação e ajuda no nascimento da nova realidade que é a pintura. Do ponto de vista mítico-simbólico, o atelier corresponde à ‘caverna matriz’, ao espaço sagrado onde reside a Grande-Deusa geradora - o locus maternus -, local por excelência onde todas as mães (e, porque não, todos os artistas) repetem esse acto primordial que é dar à luz uma nova vida.

 

Mas quais as características deste espaço relacionáveis com essa dimensão privilegiada dos espaços sagrados genesíacos? Basta pensar, por exemplo, na noção de mandala, e no seu sentido simbólico. Mandala corresponde a uma representação geometrizada da dinâmica relação entre o indivíduo e o cosmos (a mandala chega mesmo a presentificar, no plano simbólico, a totalidade do universo). Apresenta-se sempre como ‘centro’ da realidade, e representa, para o crente, o seu abrigo interior onde se encontra (ou reencontra) com Deus. A mandala é, portanto, um espaço de meditação, de contemplação e de verdadeira introspecção. No âmbito da psicanálise, Carl Gustav Jung investiga este conceito, porque crê ver nele uma imagem fiel das etapas percorridas pelo indivíduo no caminho de descoberta do seu ‘eu’ inconsciente (e respectivo processo de individuação), personificado, no caso do indivíduo masculino, pela dimensão arquetípica feminina (da anima e da Grande Deusa Mãe). Portanto, o que se propõe é que tanto a instalação Foi a Luz, como o próprio espaço do meu atelier, funcionem como locais privilegiados onde se consegue atingir uma dimensão espiritual equivalente a uma experiência religiosa, ocorrida em locais de culto. Assim, o atelier substitui o templo, como lugar onde a minha dimensão espiritual se torna possível.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 4   Foi a Luz (maquete).

 

Na verdade, o espaço em questão faz parte de um processo de auto-conhecimento, nos domínios psíquico e estético. Isto mesmo é mencionado da seguinte forma:

 

Retrair-se do alvoroço do mundo e entregar-se de vez em quando a uma tranquila meditação é uma medida altamente preconizada por Jung como recurso para preservar ou conseguir a harmonia e a integração. Muitas pessoas criativas entregam-se a retiros periódicos a fim de se revitalizar, tomando parte nos vastos recursos do inconsciente.[3].

 

Assim, o meu atelier é construído à minha medida (física e mental), consti-tuindo-se como uma ‘zona’ onde o eu/demiurgo trabalha e molda os materiais pictóricos, e onde não parece haver diferenciação substancial entre ego e espacialidade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 5   Interior do atelier (alçado Oeste).

 

 

IV

 

Depois de ter sido revelado, quase na totalidade, o processo de trabalho, permaneço com a sensação de que o mistério do acto pictórico (paralelo ao mistério do trabalho alquímico) não reside propriamente no fazer - no labora -, no lado objectivo, muitas vezes escondido ou negligenciado no espaço de trabalho. O mistério reside no outro peso da balança alquímica: no ora. Rezar, ter fé, acreditar no desconhecido. Afinal, o mistério da pintura reside não no processo (e na sua possível desmontagem e revelação), mas no facto de o eu/autor estar à deriva, à procura de algo indefinido, e possuir uma ‘luz interior’, confiando ‘cegamente’ que, no final do percurso, a pintura acontece.

 

O grande ‘segredo’ da criação pura reside, portanto, em ter fé. Uma fé que surge como uma verdadeira energia potenciadora do discurso plástico, como crença na promessa de algo invisível que há-de surgir, e no poder ‘superior’ da visualidade. Fé designa, ainda, terror pelo desconhecido, receio perante a possibilidade de falhar, e inclusive medo pelos resultados obtidos poderem superar o inicialmente previsto. Assim, o atelier é o lugar onde tento dominar e neutralizar essas sensações constantes de angústia, de deriva e dúvida perante o desconhecido que são os resultados. E como se domina esse medo? Primeiro, acreditando plenamente no inconsciente criador e, seguidamente, utilizando regras práticas de trabalho muito rígidas de modo controlado e obsessivo, dominando todos os mais ínfimos detalhes da práxis artística. Assim, no caso da criação pura, fé consiste numa espécie de conforto prévio ao sentido misterioso do devir. Este salto para lá da razão, rumo ao desconhecido, este risco que implica a adesão a verdades indemonstráveis, só pode, portanto, acontecer no autor através de uma via intuitiva, prévia ao saber racional. Concluo então que, pelo menos no meu caso, a obra nasce antes da sua possível compreensão, constituindo-se, nesse sentido, sempre como um acto de fé.

 

 

Epílogo

 

No final do dia, quando fecho a luz do atelier, saio do espaço onde vivo toda esta experiência mítico-simbólica, e regresso finalmente à realidade.

 

(26.5.2015)

 

 

 

 

 

[1] Carole SÉDILLOT, Da Alquimia, Cascais, Pergaminho, 2002, p. 115.

 

[2] Tomás SPIDLIK, In Principio Era l’Arte, Roma, Lipa Edizioni, 2006, pp. 103-105.

 

[3] Calvin HALL, Vernon NORDBY, Introdução à Psicologia Junguiana, São Paulo, Editora Cultrix, 2005, p. 78.

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