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Tomás Maia

O vestígio da luz

31 teses sobre investigar e criar (em pintura)

 

 

1. Investigar e criar são momentos de um só movimento — mas não são uma e a mesma coisa. Há investigação que não chega ao acto criador, mas toda a criação — para o criador — pressupõe investigação.

 

2. Digo «para o criador», referindo-me sobretudo à investigação em arte, e apenas secun-dariamente à investigação sobre arte. Pensar a relação entre arte e investigação implica determinar o que anima o movimento criador, e isto pressupõe que a criação não está reservada à investigação artística: pode bem existir — e existe — investigação sobre arte que é criadora. Mas quando tal acontece, a investigação aplicada (a investigação sobre qualquer coisa) purifica-se ou depura-se, tornando-se numa criação inspiradora para outra criação dita “pura”.

 

3. O criador (artístico) investiga para criar, e não para acumular ou produzir conhecimento (desde Kant que podemos identificar as razões pelas quais a arte não é conhecimento). O criador investiga para chegar ao ponto (do) desconhecido a partir do qual, somente, começa a criar. O artista serve-se de alguns conhecimentos para fazer algo irreconhecível (chamado obra de arte).   

 

4. A passagem do conhecimento para o desconhecido (que produz o irreconhecível) não se ensina. É um salto mortal. Não se ensina, ou ensina-se somente através de exemplos (este ensinamento também está em Kant). Eis a contradição relativa à necessidade do ensino artístico: a arte (o «dom natural») não é ensinável e no entanto só a escola (um exemplo de outro «dom natural») pode despertar em alguém a sua natureza de artista (a sua própria «originalidade exemplar»). Só o outro (exemplar) pode revelar o “meu” ser-artista. Daí que a obra de arte não possa ser inferida de uma regra ou de uma escola, quando, ao mesmo tempo, ela mesma instaura uma nova regra e é a possibilidade de fazer escola. E daí, também, que o ensino da arte seja a convergência quotidiana entre investigação e criação, a contradição quotidiana entre o que se conhece e o que não é da ordem do conhecimento. 

 

5. A escola de arte é o lugar da exemplificação (dos dons naturais). O professor de arte distingue-se por ser aquele que sabe dar o exemplo (em todos os sentidos da expressão); nele convergem, ou devem convergir, com a máxima intensidade, a investigação e a criação artísticas. Mas seguir o exemplo não é o mesmo que imitar (no sentido servil deste termo; Kant tem aliás o cuidado de distinguir, na terceira Crítica, a sucessão, Nachfolge, da imitação, Nachahmung).

 

6. A modernidade assume plenamente aquela distinção: o dom (o génio) dá o exemplo mas sem cultivar qualquer autoridade. O génio moderno é o autor que se desautoriza incessantemente (que reconhece que o dom recebido não provém de nenhum doador — nenhum autor primordial).

 

7. A vida em geral, a sobrevivência, a dominação dos homens (entre si), é o espaço do reconhecimento. Tal é o pensamento terrível, e talvez neste ponto inultrapassável, de Hegel. Mas a arte é um reduto de desconhecido dentro do reconhecimento. Criar é tornar-se irreconhecível. (Que haja quem procure reconhecimento pelo irreconhecível que criou; que haja quem anseie ser conhecido quando a criação nos abre ao desconhecido: só prova que a verdade da obra — o salto mortal — é literalmente insuportável, mesmo para alguns criadores.)

 

8. O criador investiga indo do conhecimento para o desconhecido, fazendo o percurso inverso do investigador criminal. O criador procura um vestígio que lhe vem do futuro — e que é memória de um passado absoluto. A obra de arte é o reverso de um crime (mortal): o artista volta ao local onde ninguém esteve para repetir o dom natural: o acto de dar (a) vida, e vida eterna (sob a forma de obra). A obra de arte é o eterno retorno do que não existe. E tal é o desejo de criar: que isso que nunca foi possa voltar, outra vez, sim, uma vez mais… Que o sempre da obra fixe — por uma vez — o nunca (mais) do tempo. 

 

9. O criador começa a criar quando já levantou um pé do conhecimento e ainda não pousou o outro no desconhecido. («O poeta é coisa leve, alada, sagrada…»: intuiu, apesar de tudo, Platão.)

 

10. Ver num exemplo existente o vestígio do que não existe: eis a essência da investigação artística.   

 

11. O artista não procura o vestígio do que passou (vestigare significa «seguir o rasto», «ir na pista»); ele procura o que não passa — ou o que se eterniza — no presente. E o que não passa é o que, paradoxalmente, passa de geração em geração — e faz gerar. É o dom. Investigar em arte é procurar um vestígio antiquíssimo em nós que vem de um futuro desconhecido.    

 

12. Se há investigação que não chega ao acto de criação, mas se toda a criação pressupõe (para o criador) investigação, é porque — no limite — criar e investigar se tornam indiscerníveis entre si. No limite que é ele mesmo indiscernível e amiúde imperceptível: uma longa ou breve passagem. O problema do criador é justamente o de não conseguir favorecer (acolher, acompanhar, suportar…) essa passagem. A passagem ao clímax do movimento, a passagem ao acto (da criação).

 

13. «A passagem ao acto» é o modo pelo qual Aristóteles, na Física (livro III), nos dá a pensar a essência do movimento: a mobilidade (a kinêsis) não é nem um ser em potência nem um ser em acto. Mais exactamente, se o movimento é pensável como um acto ou um pôr-em-obra (energeia) que não atinge o seu fim (ou que é incompleto: atêles), podemos dizer que investigar é a potência da criação: o movimento criador mantido em aberto. E, consequentemente, que criar é o acto do mesmo movimento, fechando numa obra a virtualidade deste.

 

14. A obra acabada é o movimento completo que não deixa no entanto de mostrar a sua potência: de se reabrir constantemente a si — pondo outros criadores em movimento. Quer isto dizer que a obra (ergon) se distingue dos outros artefactos (dos utensílios) e das coisas naturais porque mostra, quando levada ao seu termo (quando fica per-feita), o movimento ilimitado que a criou.

 

15. Esta hipótese sobre a investigação artística enquanto potência (dunamis) não seria de resto alheia a Aristóteles quando afirma, desta vez na Metafísica, que todas as artes são potências, «pois são princípios de mudança num outro ser, ou no próprio artista enquanto outro» (Ɵ, 2, 1046b). Mas importa também esclarecer que pensar a investigação no rasto (ou no vestígio) de Aristóteles não implica, de todo, pressupor a metafísica que comanda a sua física: a obra não actualiza uma essência. Ou, se se preferir, a obra, tal como é dada a pensar aqui, não é a perfeição ou a plenitude essencial (a entelekheia), pois isso implicaria equivaler a finalidade do acto artístico à imobilidade primordial (à imobilidade do primeiro motor que tudo faz mover).       

             

16. O investigador (artístico) procura o vestígio do que põe a criação em movimento; o criador (re)põe em movimento. E se nem tudo o que existe em potência passa ao acto, a grande obra é a que não esgota a sua própria potência. Se a obra é o telos da criação, a grande — a pujante — obra é aquela que, rigorosamente dentro dos seus limites, continua sem fim (atêles). É a obra que não cessa de ser exemplar (e, por isso mesmo, de ser inimitável).

 

17. Como pode o finito ser atêles, sem-fim? A esta questão a humanidade responde (ou tem respondido) mantendo-a em aberto através das obras (e dos filhos). Criando entes em perpétua potência de criar.

 

18. O mais surpreendente na doutrina aristotélica do movimento (não deixando de ser uma consequência inteiramente lógica da sua metafísica) consiste na demonstração da anterioridade do acto relativamente à potência. O movimento é a passagem da potência ao acto, decerto, mas este — enquanto noção e enquanto essência — já precede necessariamente a potência. O acto é imanente à potência. Neste sentido, quanto à ordem do tempo, o acto não pode ser anterior à potência, mas, num outro sentido, num sentido essencial, qualquer ser em acto é sempre primeiro relativamente a um ser em potência — e Aristóteles dá o exemplo: «Assim o homem é actualizado pelo homem, o músico, pelo músico, há sempre um motor primeiro e o motor existe já em acto.» (Ɵ, 8, 1049b) (É daqui — do facto de qualquer acto preceder sempre um outro acto — que provém a necessidade de supor, na metafísica de Aristóteles, o primeiro motor eterno que não é precedido de nada e que, por isso mesmo, é imóvel. Mas tal é o abismo do pensamento que dá pelo nome de deus. «Deus» designa a regressão infinita — abissal — na ordem da causalidade. O acto puro — sem potência.)

 

19. Pensar aqui a mobilidade subtraindo-a aos pressupostos metafísicos de Aristóteles, significa: um motor primeiro, um mote inicial, uma força motriz é simplesmente uma obra exemplar. O artista em potência é sempre precedido de um artista em acto. Se aquele não encontrar o exemplo que o fará actuar, a sua própria potência não se manifestará enquanto potência (e portanto nem sequer se manifestará enquanto impotência, pois esta implica um pressentimento, maior ou menor, do que ele mesmo — artista em potência — poderia ser). Há escola desde que se deu um acto de exemplificação, voluntária ou involuntariamente (há portanto escola desde a pré-história).

 

20. Ensinar (in-signare) é deixar em alguém um sinal (do dom). A obra é o vestígio inerte do dom manifesto (assim como um filho é o vestígio vivo do dom transmitido).

 

21. O dom é inato (a arte não se ensina), e no entanto só um sinal (actuante) do outro faz com que o inato se torne nascente (a arte ensina-se através de exemplos). Um artista que não investigue — que não procure o vestígio do seu próprio, impróprio dom — é uma pura impossibilidade.  

 

22. A consciência segundo a qual criar e investigar se tornam, no limite, indiscerníveis, é uma consciência que data de sempre. Todavia, como consciência em obra, é um facto recente: os vestígios do movimento que origina a obra eram tradicionalmente velados ou apagados. A aceitação definitiva da obra como movimento, e a aceitação deste como pôr-em-obra — numa palavra: a aceitação incondicional da criação como movimento inacabado e inacabável —, data do final do século dezanove ocidental. A própria palavra obra começa a confundir-se então com a noção de processo, pois o resultado da criação passa a mostrar a investigação em acto (haverá assim obras, em pleno século vinte, onde a potência e o acto coincidem sem resto). Work in Progress, neste sentido, é porventura a expressão mais emblemática da convergência total entre investigar e criar (e Joyce utiliza-a praticamente ao mesmo tempo em que Schwitters concebe o seu Merzbau). Moderna é a obra que não escamoteia o seu pôr-em-obra, a sua temporalidade intrínseca, a sua natureza processual ou vestigial.

 

23. «… falta um elo na cadeia das reacções que acompanham o acto de criação», escreveu Duchamp em O acto criativo (um breve texto que torna equivalentes os termos «acto» e «processo», consoante se trate do seu título original inglês, The creative acte, ou da tradução francesa feita pelo próprio Duchamp: Le processus créatif). Falta um elo: a link is missing, un chaînon manque. O elo que falta na cadeia da criação — mas que, em rigor, não se sente e não é sentido como falta — é o que desencadeia o acto (o processo) criativo. É o salto que nos expõe à mortalidade: ao definitivamente inacabado.

 

24. «Definitivamente inacabado»: foi assim que, após as fissuras do vidro, ele caracterizou o Grand Verre. Não conheço melhor definição da obra: aquilo que não teve começo (em mim) não pode ser acabado por mim. Porém, só o definitivo dá a ver o sem-fim; a obra é o definitivamente inacabado.   

 

25. É o paradoxo da obra (ou da forma em arte): é preciso ser definitivo para dar a ver o infindo e o infindável. A abertura indeterminada e contínua (a interminável investigação) não permite, paradoxalmente, fazer ver a abertura do sem-fim. («Paradoxalmente — dirá Beckett a Charles Juliet — é pela forma que o artista pode encontrar uma espécie de saída. Dando forma ao informe.») 

 

26. O artista que abriu definitivamente a prática da pintura ao sentido amplo de pensamento visual, foi o mesmo que tornou indiscernível a criação em potência — a investigação — e a sua passagem ao acto (e, exemplarmente, na peça investigada-criada durante os seus últimos vinte anos: Étant donnés…). O artista que menos obras produziu no século vinte, foi o mesmo cuja obra mais se tornou exemplar. Talvez bastasse este facto para nos instruir, num momento histórico de acelerada produção (ou regido pelo princípio doentio da hiper-produtividade), sobre o que é investigar e criar em arte (em pintura).

 

27. A pintura, claramente com Duchamp, reduz-se a um questionamento sobre o limite do visível, ampliando-se assim, não o conceito de arte, mas as possibilidades materiais da pintura (e acentuando-se, não por acaso, a exigência que cabe ao observador). Duchamp não cessou de praticar a passagem ao limite (da criação e do visível): Le passage de la vierge à la mariée, a transparência do Grand Verre, a invisibilidade do readymade, a transformação de Marcel em viúva alegre, o reflexo sombrio na janela da pintura (Fresh Widow), a vertigem do olhar na optique de précision, a virtualidade geométrica do jeu d’échecs, a travessia da pintura enquanto janela (La Bagarre d’Austerlitz), — e os dois orifícios para onde tudo converge: a conversão do observador em testemunha ocular de um acto (ou de um crime) amoroso em Étant donnés

 

28. A pintura é o lugar do pensamento do visível: o lugar em que o visível se pensa. Investigar em pintura é procurar o vestígio do ainda-não-visível. Criar (visualmente) é tornar visível o próprio facto de que há visível (e podia não haver).

 

29. Para o pintor, tudo se passa como se a realidade visível não existisse em acto mas somente em potência: tudo, a cada instante, pode desaparecer — e reaparecer miraculosamente. É precisamente por isso que o acto criativo é necessário. Cézanne não pensou noutra coisa senão no visível originando-se: o pintor procurando a luz do (re)aparecimento, fazendo-nos renascer pela visão. A pintura é a luz dada a ver como se ninguém a tivesse visto.

 

30. Mas a luz da pintura é sempre mediada, se exceptuarmos raríssimas técnicas, como, por exemplo, a do vitral (e mesmo neste caso trata-se de uma mediação…). A luz pictural é quase sempre outra matéria que não a luz natural — e de resto, desde o início da reflexão sobre a sua origem, a pintura pensou-se como skiagraphia (e não como photographia). A (escrita da) sombra é uma das primeiras mediações da luz natural (ou do Sol). O pintor investiga (segue o vestígio) da luz que não passa.  

    

31. Fiat lux é o próprio imperativo do pintor (da pintura). É uma necessidade absoluta para quem ficou temporariamente cego ou viu a noite sem fim. 

 

(4.6.2015)      

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