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Sofia Torres

 

 

 

 

Observação dos processos neurológicos na pintura

 

São hoje em dia bem conhecidos os mecanismos fisiológicos que se encontram associados a fenômenos como a respiração ou a circulação sanguínea. Mas, qual é atividade neural do cérebro no acto da pintura? Que estruturas cerebrais estão activas? É a atividade nessas estruturas diferente em artistas em compa-ração com não-artistas?

Perante uma imagem, o cérebro humano, a partir dos estímulos visuais que recebe, realiza uma serie de operações complexas, em que grupos diferentes de células nervosas são chamadas a actuar, promovendo sensações e percepções, até à elaboração interna definitiva de um objecto mental.[1]” Dentro da área da neurologia, são vários os estudos já feito de forma a compreender de que modo o nosso cérebro “vê”, ou como se comporta face a determinados estímulos tais como a música, mas, quais serão ao certo essas áreas activas no acto da pintura?

Este projecto pretende investigar os processos neurológicos subjacentes ao acto de pintar, de forma a compreender melhor os componentes em acção neste tipo de actividade, centrando-se igualmente no questionamento acerca da teoria da predominância do uso do hemisfério direito associado normalmente à criativi-dade e à prática das artes em geral.

Será a pintura uma actividade cuja acção seja predominantemente criativa? Será correcta esta separação de áreas activas no cérebro relativamente a uma actividade especifica? Qual será o processamento cerebral acerca das constan-tes decisões inerentes ao acto de pintar?

 

O ponto de partida deste estudo nasce a partir do aparente desfasamento que existe entre as actividades das artes e das ciências. Num contexto académico, provavelmente esse fosso começa a diminuir quando cada vez mais se procuram investigações interdisciplinares e cada vez mais se compreende que é na partilha do conhecimento que novas descobertas estão a surgir.

No entanto, comumente, nos meios de comunicação social ou entre vários profissionais de saúde, falaciosamente se repete a ideia de que a “pintura é uma actividade recreativa”, e desde o ensino primário se constrói a ideia de que após após os trabalhos (matemática, ciências) o aluno pode então como ocupação do tempo livre entregar-se às artes visuais.

O desconhecimento geral, e a origem destes rótulos falaciosos poderão existir por vários motivos, porém, o mais predominante nasce de uma forte tendência ocidental para uma hierarquização dos conhecimentos, proveniente da noção dualista cartesiana entre corpo/mente que ainda não foi totalmente superada.

António Damásio defende em parte essa ideia em O Erro de Descartes quando afirma: “(…)há algo de paradoxal na nossa cultura relativamente à conceptua-lização da medicina e relativamente aos seus profissionais. Há muitos médicos que se interessam pelas humanidades, das artes à literatura à filosofia.(…) E no entanto, as escolas de medicina de onde eles provêm, ignoram essas dimensões humanas, concentrando-se na fisiologia e na patologia do corpo (…). O cérebro (…) foi incluido nesse empreendimento, uma vez que era um desses “orgãos”. Mas o seu produto mais precioso, a mente, não foi alvo de grande preocupação, (…) e, na verdade, não tem constituído o topo principal da especialidade associada ao estudo das doenças do cérebro: a neurologia. (…). O resultado desta tradição tem sido uma considerável negligencia da mente enquanto função do organismo. Poucas escolas de medicina oferecem actualmente aos seus estudantes qualquer formação acerca da mente normal(…). As escolas de medicina  proporcionam estudos da mente doente que se encontra nas doenças mentais, mas é espantoso ver que, por vezes, os estudantes começam a aprender psicopatologia sem nunca terem aprendido psicologia normal.”[2]

Um exemplo disso está patente nos poucos estudos que existem na área da neurologia em relação à pintura, onde a mesma é apenas analisada em pacientes com Alzheimer, ou nas influencias da demência frontotemporal na produção de arte.[3] Nestes casos em concreto, a pintura consiste apenas numa ferramenta ao serviço da ciência, fora da sua especificidade ou características essenciais, e onde se procura entender o seu mecanismo neurológico em contexto terapêutico.

Sob um ponto de vista historicista, os objectivos predominantes das ciências, da biologia e da medicina têm sido apenas a compreensão da fisiologia e da patologia do corpo, “(…)a mente foi excluída, tendo sido em grande parte relegada para o campo da religião e filosofia (…).”[4]

 

Por muito incómoda que esta afirmação possa ser, ao longo da historia ocidental as artes foram entendidas como uma actividade da mente e como tal encaradas como algo subjacente à religião, ou a partir de dado momento ligadas à esfera das humanidades, da criatividade e da subjectividade. É famosa a frase de Leonardo da Vinci “La pintura é cosa mentale”, mas, menos conhecida é a sua procura da definição da pintura como uma ciência, onde enfatiza a sua base física, explicando num dos seus cadernos as dez funções ópticas do olho (“claro/escuro, luz, corpo e cor, forma e localização, distância e proximidade, movimento e repouso") como componentes essenciais da pintura.

Este problema do abismo ocidental que separa o corpo da mente ainda não é matéria de debate para o público em geral, e como tal, todos estes sofismas acerca da pintura e da arte são aceites ainda de forma generalizada.

São aceites da mesma forma que “o erro de Descartes” continua a prevalecer na forma de como a investigação nas ciências se processa: “Essa separação cartesiana ainda impera (…) no modo de pensar de neurocientistas que insis-tem que a mente pode ser perfeitamente explicada em termos de fenômenos cerebrais, deixando de lado o resto do organismo e o meio ambiente fisico e social.

A ideia de uma mente descorporalizada parece ter também moldado a forma peculiar como a medicina ocidental aborda o estudo e o tratamento da doença. A divisão cartesiana domina tanto a investigação como pratica médica.”[5]

 

Damásio refere-se aqui apenas à área da medicina, mas essa separação moldou uma forma de pensar transversal em todo o sistema ocidental. A separação entre corpo e mente direcionou a pratica médica e toda uma forma de pensar a investigação académica. Basta ver em termos percentuais quantidade de fundações, bolsas e apoios governamentais ou privados dedicados à investiga-ção cientifica, e o número de projectos ou bolsas atribuídos a investigações ligadas às humanidades ou à pratica artística.

 

Artes e ciências tem andado num percurso em paralelo, e, os poucos cruzamen-tos que se encontram são excepções que vêm precisamente a confirmar essa tendência.

É na procura de um diálogo entre estas duas áreas de produção de conheci-mento - Artes e Ciências, mais especificamente entre pintura e neurociência no qual se baseia o objectivo principal deste projecto.

A neurociência procura investigar o funcionamento do sistema nervoso em termos anatómicos e fisiológicos a nível cerebral, e comumente trabalha em conjunto com as áreas da semiótica, da linguistica, da teoria informática e cognitiva, procurando compreender modos de percepção, aprendizagem e aquisição do conhecimento humano.

Recentemente foi criada a área da neuroestética, que procura apropriar as investigações da neurociencia para dentro da prática artística e desse modo gerar novas ferramentas para  compreender e elucidar a história e a produção de arte. Através da arte a neuroestética procura criar e entender uma nova filogenia acerca das normas estéticas que para além do seu significado primário como obras de arte que funcionam no campo estético, possam também explicar questões  que normalmente pertenceriam à área da neurociência, da filosofia, e da psicologia evolucionista entre muitos outros campos.

 

No entanto, as investigações entre a arte e neurociência, estão ainda na sua primeira infância.

Apesar dos inúmeros avanços tecnológicos nas áreas da neurologia e das novas propostas apresentadas pela neuroestética, a relação entre a pintura e estas disciplinas não está ainda de forma alguma  estudada sistematicamente.

 

A maioria dos estudos feitos nestas áreas acerca da arte em geral ou em especifico da pintura, centram-se predominantemente sob o ponto de vista neurológico ou no estudo dos circuitos cerebrais em contextos patológicos (como já foi referenciado anteriormente), ou ainda no fenômeno da cognição visual,  onde autores como Margaret Livingstone[6] ou Robert Solso[7], com a ajuda da neurociência cognitiva procuram compreender as muitas sub-rotinas neurológicas envolvidas na percepção visual e na percepção da arte.

 

Na área da percepção visual, é ainda obrigatório referir o famoso Drawing on the Right Side of the Brain de Betty Edwards, que procurou explicar a actividade dos hemisférios cerebrais e das suas funções especificas em relação à prática do desenho. Lançado em 1979, só passado 35 anos é que com novas análises de morfometria se está a descobrir que provavelmente essa divisão entre lado esquerdo/direito do cérebro com a atribuição de funções distintas em relação à criatividade pode ser falaciosa, e que a matéria neural nas partes que lidam com a percepção visual, navegação espacial e habilidades motoras finas ocorre em ambos os hemisférios,[8] comprovando desta forma o quão pouco realmente conhecemos acerca da mente humana.

 

Dentro da prática artística, o que se tem efectivamente vindo a descobrir é que os artistas observam o mundo de maneira diferente do que os não profissionais da área[9], e que a prática artística provoca uma maior interactividade entre a DMN[10], aumentando a especificidade e a diferenciação entre o córtex motor primário e entre o córtex somatosensorial primário em repouso.[11]

 

O objectivo deste projecto reside especificamente na área a pintura e no acto de pintar. Na execução de uma pintura, cada percepção, cada decisão e movimen-to consequente são executados sob uma concentração profunda onde é necessária uma consciência permanente do “todo” dentro do qual agem as múltiplas variantes acerca da cor, luz, sombra, composição, forma, textura, e gesto.

O que acontece efectivamente em termos de actividade cerebral nestes momentos? Para Umberto Eco “(…) o reconhecimento através da representa-ção desdobra-se entre o tipo cognitivo (TC - baseado no conceito empírico e influenciado pela cultura), e o conteúdo nuclear (CN - conjunto de interpre-tantes): de um lado falamos de um fenômeno de semiose perceptiva (TC) e do outro de um fenómeno de acordo comunicativo (CN). O TC - que não se vê e não se toca - é apenas postulado em base aos fenômenos do reconhecimento, da identificação e da referencia feliz: o CN representa o modo no qual inter-subjectivamente procuramos esclarecer o que compõe um TC. O CN, que reconhecemos sob a forma de interpretaste, vê-se e toca-se - e isto não é apenas uma metáfora, dado que as interpretações do termo - cavalo - são tanto os cavalos esculpidos em bronze ou em pedra.”[12]

Mas, em termos de áreas cerebrais, que estruturas são activadas? E é a atividade nessas estruturas diferente em artistas em comparação com não-artistas?

A resposta a estas questões pretende ser respondida em testes de laboratório a partir de scans cerebrais a artistas-plásticos em momentos de trabalho. O mesmo irá ser feito também a uma população de não-artistas de forma a que se possam comparar os resultados.

 

A evolução tecnológica acompanhou desde o inicio a evolução humana - da criação das ferramentas mais simples para caçar, ou do uso de sangue ou terra para deixar registos pictóricos.  Esse “estudo da técnica” acompanhou o ser-humano num processo continuo  de aplicação de recursos para a resolução de problemas, aumentando assim o seu auto-conhecimento.

Com a ajuda desses processos tecnológicos, numa parceria entre duas áreas de investigação - artes e ciências - este estudo pretende obter uma resposta objectiva acerca do que acontece numa área muito especifica das artes. Apesar de agir sob um campo de acção particular, este projecto poderá ser uma chave essencial acerca de uma importância renovada da pintura, quer a nível escolar/académico, quer a nível de um publico mais geral. Sob um ponto de vista neurológico, poderá ser mais uma chave de acesso ao cérebro não só em termos do fenômeno da cognição visual, mas em termos da concentração e compreensão de “um todo” envolvido numa actividade tão complexa como o exercício da pintura. 

Antonio Damásio parte do principio que a “consciência surge quando conhece-mos” e que “só podemos conhecer quando também representamos a relação entre objecto e organismo”[13]

Este projecto pretende descobrir essa essência do conhecimento entre a relação do pensar e do fazer na pintura.

 

(10.6.2015)

 

 

 

 

 

[1] Cardoso, António, Ribeiro, Susana, Ramada, José, Cor e luz na interpretação da imagem: tradução cerebral, Edição de autor, 2014. pag. 9. ISBN 978-989-20-4519.

 

[2] Damásio, António R., O erro de Descartes : emoção, razão e cérebro humano, 23ª ed. - Mem Martins : Publicações Europa-América, 2003, pp. 260

 

[3] Para mais informação ver: Drago, V., Foster, P. S., Trifiletti, D., FitzGerald, D. B., Kluger, B. M., Crucian, G. P., & Heilman, K. M. (2006). What’s inside the art? The influence of frontotemporal dementia in art production. The Official Journal of the American Academy of Neurology, 67(7), 1285-1287. doi: 10.1212/01.wnl.0000238439.77764.da

Fornazzari, L. R. (2005). Preserved painting creativity in an artist with Alzheimer's disease. European Journal of Neurology, 12(6), 419-424. doi: 10.1111/j.1468-1331.2005.01128.x

 

[4] Damásio, António R., O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano, 23ª ed. - Mem Martins : Publicações Europa-América, 2003, pp. 260.

 

[5] Damásio, António R., O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano, 23ª ed. - Mem Martins: Publicações Europa-América, 2003, pp. 256.

 

[6]Livingstone, M. (2002). Vision and Art - The biology of seeing. New York: Harry N. Abrams.

 

[7] Solso, R. L. The cognitive neuroscience of art: a preliminary fMRI observation. Journal of Consciousness Studies, 7(8-9), 75-86.

 

[8] Chamberlaina, R., McManusb, C., Brunswickc, N., Rankind, Q., Rileye, H., & Kanaif, R. (2014). Drawing on the right side of the brain: A voxel-based morphometry analysis of observational drawing. NeuroImage, 96, 167-173. doi: 10.1016/j.neuroimage.2014.03.062

 

[9] Vogt, S. & Magnussen, S. (2007). Expertise in pictorial perception: Eye-movement patterns and visual memory in artists and laymen. Perception, 36, 91-100.

 

[10] Default Mode Network (sem tradução para português) conjunto de regiões cerebrais que estão activas quando o indivíduo não está focado no mundo exterior.

 

[11]Bolwerk, A., Mack-Andrick, J., Lang, F. R., Dörfler, A., & Maihöfner, C. (2014). How Art Changes Your Brain: Differential Effects of Visual Art Production and Cognitive Art Evaluation on Functional Brain Connectivity. Plos One, 9(12). doi: 10.1371/journal.pone.0116548

 

[12] Eco, Umberto, Kant e L’ornitorinco, Bonpiani, Milano, 1997, pp 116.

 

[13] Carmelo, Luís, Músicas da consciência: entre as neurociências e as ciências do sentido, Mem Martins : Publicações Europa-América, 2002, pp. 78.

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